O mercado editorial brasileiro está redescobrindo os quadrinhos africanos e com eles uma forma bem específica de contar histórias. Porém não é possível traçar característica que tornem as HQs do continente homogêneas já que os 54 países não possuem uma única maneira de pensar. A África possui tanta variação que num mesmo país é possível encontrar expressões culturais diversas dependendo de em qual lugar você esteja. Esse é um quadrinho que lhe convida a conhecer alguns detalhes sobre a cultura de Camarões. Ainda que a roteirista seja francesa, os detalhes da história, ambientação e a base cultural para a sua construção são todas camaronesas. A Editora Skript publicou esse quadrinho da Éditions Félés em novembro 2021.
O físico Jacques Mekamgang, durante uma palestra na Universidade de Lausanne na Suiça, começa a sentir-se muito mal, no ápice dessa sensação, ele escuta um barulho alto vindo de uma criatura sombria com olhos brilhantes e vermelhos. Uma criatura que provoca temor mas que lhe é muito familiar. Ao mesmo tempo em que o protagonista vai a médicos pra descobrir a causa clínica da sua sensação, nos separamos com a sua história, a sua infância no Camarões, o seu ambiente familiar e os costumes que o formaram enquanto pessoa.
O que mais chama a atenção desse quadrinho é em qual gênero narrativo ele pode ser enquadrado. Ainda que não seja uma típica história de terror, a criatura conhecida como Mpoue acaba personificado o medo de Jacques. As primeiras informações que ele teve sobre a criatura vieram ainda na infância que era um momento em que não havia maturidade suficiente para compreendê-la, por isso é comum essas histórias despertarem nele medo e, talvez por isso, a aparência dela seja pra ele tão aterradoras. Por isso são nos momentos em que Jacques a encontra que a imersão da leitura nos leva a sentir o medo dele, não só por causa dela mas por todos os elementos que a compõe e que são representados no quadrinho de forma assustadora pelo traço incrível do camaronês Ngola.
É interessante o quanto a arte da obra manipula as nossas emoções, partindo da bela estrutura da universidade e a linda casa de Jacques que conseguiu tornar-se muito bem sucedido na Suiça. Em seguida Ngola nos transporta para uma Camarões com riquezas naturais e com uma vida simples e bucólicas até sermos retirados de toda essa beleza e sermos obrigados a nos deparar com uma criatura medonha em todos os seus detalhes de um quadro que ocupa toda a página, para piorar, há momentos em que Mpoue não está sozinho!
Entretanto o roteiro de Blanche Lancezeur mostra que o mistério em si nem está em Mpoue, aos poucos vamos conhecendo Jacques e compreendemos a sua trajetória de vida e a relação dele com Mpoue até que ao final descobrimos o que aconteceu pra ele passar mal durante a palestra. A reviravolta está em descobrir junto com o protagonista sobre o porquê essa história não ser uma típica história de terror ainda que haja ali alguns elementos.
Para compreendermos a pessoa de Jacques conhecemos a sua infância e o quanto as suas raízes permanecem nele por mais distante que ele esteja. Isso bateu forte em mim por possibilitar lembranças de minha vida e decisões que acabei tomando. Os meus pais são de uma pequena cidade do interior do Piauí que após casarem foram morar na capital. Ali eu nasci e vivi por 28 anos, eu tinha 25 anos quando me formei e trabalhei em algumas cidades, mas curiosamente (ou não) eu fui construir família após ir trabalhar numa cidade que fica a apenas 10 km da cidade dos meus pais e que possui várias características similares. De uma certa forma, a vida proporcionou um retorno a minhas raízes e foi lá em que aparentemente o ciclo se completou. É no reencontro de Jacques com a sua própria vida que pude enxergar a minha própria trajetória.
A edição traz uma introdução do doutor antropólogo Daniel de Jesus Figueiredo em que ele comenta algumas características da obra com um texto sem expressões técnicas específicas da sua área de pesquisa, pelo contrário é um texto acessível e que contribui para ambientar o leitor na história que está prestes a ler. Ao final o editor e tradutor Márcio Rodrigues escreve um texto explicando sobre cuidados específicos que devem ser tomados ao traduzir quadrinhos africanos, informações úteis para leitores e demais pessoas que pretendem trazer esse tipo de material para o Brasil. Nos extras além de rascunhos há um glossário com informações relevantes, pena que a numeração de página indicada lá não é diferente da paginação da edição, o leitor precisa ter algum esforço pra encontrar as páginas onde os termos citados aparecem. Por outro lado, é preciso elogiar o tamanho da obra que possibilitou admirar os detalhes dessa arte espetacular.
O Chamado de Mpoue é um ótimo quadrinho camaronês que tem como maior destaque a sua narrativa que surpreende ao contruir uma história que mesmo tendo elementos de medo, se apresenta ao leitor com uma maneira peculiar de contar histórias e que estabelece uma ponte entre algumas das tradições de um povo distante (mas nem tanto!). Esse é um quadrinho indicado pra quem gosta de sair do mais do mesmo através do conhecimento de outras culturas, por possibilitar um contato com uma narrativa diferente dos fast food estadunidense e contemplar além de uma história bem escrita, uma arte que encanta de diversas formas.
Ficha técnica:
Publicado em: novembro de 2021
Licenciador: Editions Félès
Categoria: Álbum de Luxo
Gênero: Fantasia
Status: Edição única
Formato: (20 x 28 cm)
Colorido/Lombada quadrada
Preço de capa: R$ 69,00
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