Hitler de Shigeru Mizuki

 


Em setembro de 2023, a Editora Devir publicou a biografia em quadrinhos de um dos maiores genocidas da História. Shigeru Mizuki é autor de Marcha para a Morte e Nonnonba e traz aqui um amplo trabalho de pesquisa para retratar esse nefasto personagem desde a sua infância até os seus últimos dias. A obra traz detalhes sobre como um "João Ninguém" foi tomando forças para ser o principal líder alemão e como foi estabelecida a relação inclusive entre líderes de importantes países na época. 

Já nas primeiras páginas, o autor deixa claro o seu posicionamento ao mostrar o perigo que uma pessoa com o caráter de Hitler poderia causar ao mundo. Em seguida, ele mostra a juventude patética desse personagem que queria ganhar dinheiro como artista, ainda que não possuísse talento algum para isso. Como ele não queria trabalhos com esforço físico, ele chegou a mendigar ajuda do governo para sobreviver e por pouco não foi preso por se recusar a servir ao exército. Se nessa época ele já era um trabalhador fracassado, o mesmo ocorria com o seu carisma em conquistar mulheres, A obra mostra que para cada um dos seus fracassos havia uma justificativa que não fazia o menor sentido: os judeus. A sua frustração, que era ampliada por uma difícil situação financeira que a Alemanha passava, era contida pela certeza de que o país voltaria a ser grande novamente, já que ele acreditava que os arianos seriam a "raça superior".

Esse sentimento foi transformado em discurso que contagiava pessoas que mal tinha o que comer e sem perspectiva de melhoria. Por isso, você junta a idealização de um passado de glória com a atribuição de culpa aos judeus que eram bem sucedidos economicamente, isso fez com que as pessoas acabassem sendo atraídas. Assim o minúsculo partido nacional socialista se viu adquirindo adeptos pelas falas dessa pessoa que não tinha razão mas tinha convicção suficiente para fazer as demais acreditarem. Por isso, entre os ideais do partido ao carisma de Hitler, o partido preferiu abrir mãos dos seus pensamentos à medida que o porquera se impunha como chefe do partido. Com um número de pessoas sob a sua liderança e com os seus ideais de morte e anti-democrático, Hitler foi conquistando o apoio das forças de segurança como exército e policiais. Por fim a sua figura já chamava tanto a atenção que a elite alemã decidiu financiar o partido com a intenção de que se opusesse ao Partido Comunista e mantivesse os privilégios dos empresários alemãos.

A tônica da morte é algo muito atraente, já que ao mesmo tempo que cria medo ao apontar aos "inimigos que estão prejudicando a sua família", possibilita uma solução direta: matar. É contando com o instinto de morte que as ideias nazistas vão encontrando abrigo na mente de cada vez mais pessoas em cada situação de indignação que elas presenciam. Assim é muito mais simples uma sociedade desenvolver tecnologias do que desenvolver uma ideologia que a proteja da barbárie. A obra mostra que o governo alemão já percebia o caminho perigoso que os ideais anti-democráticos nazistas poderia atingir e chegou a proibir o partido e manteve Hitler preso. Cumprida a pena e com a falsa promessa de que as leis seriam respeitadas, o genocida retoma a sua força a ponto de chegar a atingir o principal cargo do governo. Isso demonstra que, para a democracia poder funcionar é preciso necessariamente estabelecer limites. Há ideias que levam a extinção da mesma e por isso elas devem ser impedidas. É por isso que não há como existir um partido nazista e o mundo percebeu isso apenas quando milhares de inocentes foram mortos devido a crença de uma suposta superioridade ariana que justificou toda essa carnificina ainda sobre a justificativa de uma vontade divina. 

O quadrinho mostra que nem mesmo os ideais da família eram respeitados por essa figura. Hitler se apaixona perdidamente por uma sobrinha com 17 anos, uma relação que pode ser considerada tanto como pedofilia quanto incestuosa e ao fina ainda mostrou-se ser abusiva com a maneira como os ciúmes dele restringia os atos dela. 

Em vários momentos, a história se relaciona com o presente de forma indireta quando a gente vê similaridades dos acontecimentos no início do Século XX com o discurso e ações da extrema direita no Brasil. Pra ter uma ideia, a narrativa desse quadrinho é excelente, ainda que haja vários personagens Mizuki dá uma identidade a eles que faz com que a gente não se perca na leitura. Apesar disso, não é uma leitura fácil. Isso é um relato histórico em que milhares de inocentes foram mortos por causa de religião, por causa de cor de pele ou por ter costumes e sexualidade que não condiz com aquilo que o sanguinário estabeleceu como sendo o correto. À medida que a gente percebe os vários pontos em comum entre o nazismo e o bolsonarismo, a leitura vai ficando mais densa. Para exemplificar isso vou trazer uma citação do juramento nazista presente na obra e em seguida vou trazer o quanto aquilo é próximo do bolsonarismo: "Faço em nome de Deus esse juramento sagrado de que obedecerei incondicionalmente a Adolf Hitler, führer do povo e do reich alemão e comandante supremo das forças armadas, e de que, como bravo soldado e por este juramento, estou preparado para sacrificar minha vida sob qualquer circunstâncias." No Brasil durante discurso, Bolsonaro pede aos seus apoiadores "Repitam comigo: Eu juro dar minha vida pela minha liberdade" (assista aqui) É decepcionante todas as vezes que eu lia na obra um "Alemanha acima de todos", frase que também foi utilizada na campanha de uma pessoa abominável que foi presidente do Brasil há poucos anos. 

O traço de Mizuki tem um estilo próprio com o seu jeito cartunesco, o que acaba contribuindo narrativamente. Vários momentos da obra são bem descritivos e um traço rebuscado poderia dar um ar de exaltação a figura horrenda que foi Hitler. Contudo o traço intensifica a sua figura patética, o que vai ficando menos intenso com o final da obra Quando fica claro toda a destruição e o perigo que ele representa ali nos últimos capítulos, é que o traço de Hitler possui mais detalhes e se distancia bastante do estilo original. Se os personagens são bem cartunescos, a ambientação é bem detalhada. Isso possibilita que a gente compreenda a dimensão do que foi tudo aquilo, os tamanhos dos exércitos, batalhas e armamentos. 

A Segunda Guerra Mundial poderia ter sido útil para mostrar para a humanidade ao mostrar as consequências que a manipulação de ideias absurdas e preconceituosas podem causar e o quanto a democracia é necessária, além do risco de auferir investimentos e poder a alguém que se propõe a matar pessoas a esmo pelo simples fato de não serem iguais a um determinado povo. Porém o Século XXI está aí pra mostrar que a intolerância se organiza a partir das redes sociais tão populares com o advento da internet. O mundo agora vive a mercê do ódio alimentado pelos boatos que, ou são iguais ou são similares ao que Hitler utilizava para fascinar multidões. Um outro componente desse tempero maligno é a manipulação religiosa. Hitler utilizava um Deus cristão para abençoar o terror que ele propôs abertamente e hoje pessoas manipulam a fé nesse mesmo Deus para pregar ódio, intolerância, tortura e morte. Aqui no Brasil isso fascinou uma boa parte de Cristãos que foram levados a justificar o ódio a partir de trechos do Antigo Testamento. Quando o esperado era que pessoas que seguem essa religião desse primazia ao Evangelho. Como justificar a exaltação tão forte a mortes e armas, quando Jesus Cristo diz "Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância." (João 10, 10) ou como olhar para uma outra pessoa como um inimigo quando Cristo diz "Amarás o próximo como a ti mesmo" (Mateus 22, 37-39). Infelizmente o ódio continua sendo justificado como se fosse "abençoado por Deus".

Hitler de Shigeru Mizuki é um excelente quadrinho na maneira como o artista transformou uma ampla e detalhada pesquisa numa obra acessível. Ao mesmo tempo que ela tem inúmeros méritos pela narrativa e pela arte, é uma obra difícil de ser lida por se tratar de um homem que levou a um massacre com o envolvimento de diversos países e que o seu legado de ódio infelizmente segue vivo até hoje. Contudo essa é uma obra necessária, assim como qualquer outro bom material crítico sobre a Segunda Guerra. A partir do momento que a gente dá as costas pra História ou se esquiva de aprofundar conhecimentos sobre questões da atualidade a partir de material de pessoas qualificadas, é que a gente vê que a repetição do erro será inevitável. A compreensão do mundo é complexa e não é um video curto de um minuto e meio que vai explicar o que você precisa saber e muito menos aquele guru que tem milhares de seguidores mas nunca pisou numa Universidade, uma pessoa que tudo o que sabe fazer é contradizer sem base alguma um conhecimento construído a partir de inúmeras evidências. O Século XXi mostra o quanto precisamos ser mais seletivos com o conteúdo que consumimos porque manipular pessoas é fácil para quem segue a fórmula: saudosismo/ criar um inimigo/ explicações fáceis. Por isso o desafio nos próximos anos vai estar na nossa capacidade de filtrar essa gama de informações que é despejada ao nosso redor e como a gente pode evitar atribuir credibilidade a qualquer rosto carismático de um video curto bem editado. 

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Ficha técnica: 

Título original: 劇画ヒットラー 

Gekiga Hitler

Editora: Jitsugyô no Nihon sha 

Roteiro e desenhos: Shigeru Mizuki

Tradução: Arnaldo Oka 

Formato: 17 x 24 cm

Lombada: 2 cm

Estrutura: 288 páginas PB (com 

páginas coloridas)

Acabamento: brochura com sobrecapa

Peso: 550 g (estimado)

Área de interesse: História; Segunda-

Guerra mundial

Público: Adulto 

Preço de venda: R$ 99,00

Leia também da Editora Devir:

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