Se você está lendo esse texto e concluiu algum curso de nível superior eu deixo o questionamento: quais são as pessoas negras de referência na área que você estudou? Eu sou formado em psicologia e posso afirmar que até conhecer Frantz Fanon, eu não conhecia nenhuma da minha área. O protagonista desse livro é um psiquiatra que nasceu nas Antilhas e que iniciou os seus estudos na França. Atualmente ele influencia os debates sobre a visão decolonial e a interferência disso no comportamento humano. Essa biografia traz os elementos de vida pessoal e o contexto histórico que foram essenciais para a formação do seu pensamento. A Editora Veneta publicou esse quadrinho em outubro de 2023.
O roteirista francês Frédéric Ciriez inicia a obra a partir de um debate de ideias entre Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Frantz Fanon, uma conversa profunda entre pessoas com o mesmo nível intelectual. Então por que apenas um deles só passou a ser conhecido a partir da segunda década do Século XXI? Além dessa resposta levar em consideração a evidente cor da pele de Fanon, acredito que não se limita a isso. As ideias desse autor geram um incômodo na elite intelectual europeia de tal forma que para ela foi mais fácil simplesmente ignorar a sua existência, ainda que ele tivesse o reconhecimento e admiração de vários pensadores relevantes da época.
A obra de Fanon retrata o comportamento humano a partir da compreensão das relações interpessoais estabelecidas após a colonização européia ocorrida na América e na África. Portanto as ideias de superioridade e inferioridade entre povos foram criadas seja para justificar a invasão e o genocídio durante a invasão nesses continentes ou quando os Europeu faziam aliança com grupos étnicos locais para garantir que a sua população se mantivesse subalterna a eles.
Como médico, Fanon compreendeu as consequências dessa exploração na saúde mental ao observar o perfil social dos seus pacientes. Porém ele não foi apenas médico mas também foi um soldado que lutou na Segunda Guerra Mundial e viu a falta de reconhecimento aos seus companheiros africanos que lutaram contra a ocupação nazista. Só através do aprofundamento desse contexto que é possível compreender a acidez como ele se manifesta nos seus livros assim como no debate com os demais pensadores citados. A forma como ele se expressa assusta e Ciriez aproveita disso para introduzir a história de vida desse personagem, para mostrar a relação da sua vida com a sua maneira de se expressar.
Quando a gente percebe essa relação, a leitura fica ainda mais interessante e ainda que nós resistimos a aceitar que a luta armada seja o melhor caminho, passamos a questionar qual alternativa efetiva que cidadãos de países africanos poderiam ter para lidar com os europeus que invadiram, saquearam e assassinaram no seu território e mantinham o poder político. Assim como as pessoas em África poderiam reassumir o seu protagonismo? A obra mostra as lutas pela independência no norte da África em que o protagonista esteve na linha de frente tanto como um soldado estrategista como com um psiquiatra que buscava fugir do tratamento ortodoxo.
Porém a leitura dessa extensa obra em alguns momentos é cansativa, já que o autor cita várias pessoas que fizeram parte daquele período histórico. Por isso a Editora Veneta fez a correta decisão de trazer uma obra com páginas com notas explicando tanto as pessoas ali citadas quanto detalhando o contexto histórico que o personagem cita nas suas falas. Para isso as tradutoras Maria Teresa Mhereb e Ana França Alvarenga contaram com a contribuição de Marcio Rodrigues, Rômulo Luís e Rogério de Campos para contribuir nas notas que detalham figuras históricas dos paises do norte da África. Sem essas explicações, seria impossível a compreensão da obra. Contudo o autor cita tantos nomes que eu tive a impressão que o corpo editorial no Brasil cansou de detalhar cada um deles. Eu entendo que a obra foi concebida também para ser um material de referência para pesquisa em quem tem a intenção de aprofundar sobre os fatos ali citados, mas em alguns momentos isso compromete o prazer da leitura. Felizmente para criar um contraponto a isso os autores mostram falas impactantes de Fanon que resgata o nosso interesse em continuar lendo.
A luta pela libertação colonial não se limita a uma atitude política de independência do território, o colonialismo também atinge a cultura e com isso a formação de valores estéticos. Por isso, o nosso conceito de beleza é algo importado do país que historicamente colonizou o país em que vivemos. Daí a importância de ter contato e valorizar outras culturas que vão de encontro àquelas dos países colonizadores. Nesse sentido o traço de Romain Lamy passa esse ar de não ser adaptado aos valores estéticos que nos habituamos. A sua arte pintada não me incomoda e para mim ela fica ainda mais interessante quando ele trabalha paisagens nas ambientações. Até a capa horrível dessa obra faz sentido ao trazer um conceito estético que incomode, o que para mim foi uma escolha interessante.
Frantz Fanon é uma biografia que consegue traduzir bem tanto as ideias desse psiquiatra quanto o contexto histórico que as influenciaram. A partir daí a gente se incomoda ainda mais sobre os motivos em torno do tempo que levou para que um pensador dessa relevância pudesse tornar-se conhecido. Além de uma biografia esse é um livro com referências relevantes para quem quer pesquisar mais sobre a História dos países do norte da África. Contudo conhecer as ideias de Fanon não deve limitar-se a pessoas negras mas também a pessoas brancas que compreendem que as relações de manutenção de privilégio também a prejudicam quando isso é utilizado para a manutenção de uma vida maravilhosa de poucas pessoas e assim eles compreendam que conservar essa situação é uma maneira de impedir a sua própria melhoria de vida.
Ficha técnica:Licenciador: Frédéric Ciriez & Romain Lamy
Categoria: Graphic Novel
Gênero: Alternativo
Status: Edição única
Formato: (21 x 28 cm)
/Capa dura
Preço de capa: R$ 119,90
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