A Diferença Invisível - a experiência em descobrir-se autista sendo uma mulher adulta

Capa de A Diferença Invisível publicada pela Editora Nemo


Para Marguerite Yourcenar o cotidiano é uma experiência dolorosa, isso porque ela tem uma dificuldade intensa em ter uma vida social nas suas nuances mais típicas como a interação no trabalho, ir a festas e compreender algumas regras sociais. Na visão dos outros ela é esquisita e por isso costuma ser muito criticada. Por conta disso, ainda que exerça o seu trabalho com competência, a pouca habilidade social a coloca em risco inclusive de perda do seu cargo além dos demais problemas pessoas que ela trava com as pessoas mais próximas. Por conta disso, Marguerite encontrou na internet relatos com que ela se identificou e a fez se questionar se ela não seria uma pessoa autista. A Editora Nemo publicou em junho de 2017 essa graphic novel da Delcourt. 

Essa obra é inspirada na vida da roteirista francesa Julie Dachez, mulher com autismo que de tanto sofrer pela incompreensão dessa condição, resolveu escrever um blog comentando sobre a sua vida. Fabienne Vaslet, leu esse material e convidou-a a pensar juntas uma história em quadrinhos que adaptasse aquilo. 

O autismo em mulheres tem uma incidência bem menor que nos homens, parte disso se deve ao fato das mulheres, com o passar do anos, procurarem disfarçar o seu comportamento para parecer o máximo possível com o de uma pessoa típica. Isso é mostrado muito bem nessa obra que se divide em antes e depois do diagnóstico. Nas duas situações, o  que não muda é a maneira como a protagonista precisa lidar com a ignorância das pessoas. Se antes há toda uma insistência para que Marguerite se relacione igual aos demais, após o diagnóstico há o deboche sobre a existência do diagnóstico e a sugestão insistente em procurar maneiras para "curá-la". 

Dachez transmite no seu roteiro uma maneira direta e tocante sobre como é viver a vida nessa condição. Longe de ela querer conquistar o leitor pelo drama excessivo, ela prefere mostrar tudo aquilo que atinge simultaneamente os seus sentidos que são muito sensíveis a estímulos bem específicos. 
Página interna de A Diferença Invisível

O que me encantou particularmente na obra foram os traços de Mademoiselle Caroline. Além de ser um estilo que transmite muito na sua simplicidade, ele é de uma beleza inegável. A desenhista francesa conseguiu ser bem sucedida no desafio que é demonstrar como é ser uma autista em ambientes com estímulos por todos os lados. Um dos recursos que ela utiliza são as cores. A obra inicialmente é predominantemente preto e branco com um amarelo ou vermelho aparecendo em locais muito específicos. Ela utiliza isso pra mostrar o quanto, barulhos de máquinas, conversas aleatórias e luzes a atingem e a gente percebe o esforço que deve ser necessário para aparentar tranquilidade com todo esse incômodo. As cores inclusive, exercem um significado diferente antes e após o seu diagnóstico. 

Um outro momento em que eu fiquei bem tocado foi na busca da protagonista por um tratamento com psicólogo clínico. O fato é que a graduação em psicologia se volta com mais intensidade nas teorias que explicam a formação da personalidade típica e ao final do curso são visto técnicas de como lidar com pessoas na clínica. Os exemplos de adoecimento comumente citados está entre depressão, ansiedade ou algum sofrimento existencial. O curso trata de demais transtornos mentais ou condições atípicas de comportamento mas com um tempo de aprofundamento que muitas vezes é insuficiente. Por isso, o ideal é que pessoas autistas ou seus familiares, se for possível, busquem por profissionais com experiência comprovada ou que foram indicados por outros pacientes. A obra mostra que em um momento a personagem busca indicações num grupo de pessoas autistas, que é o mais recomendado. 

Quando o diagnóstico é feito por psicólogos, o ideal é quando esse profissional utiliza uma bateria de testes além de um questionário cheio de perguntas abertas que permitem que o paciente exponha em detalhes a sua vivência pessoal. É bem verdade que isso necessariamente amplia o custo desse diagnóstico. Porém se não for possível algo tão minucioso, fique em dúvidas quando o profissional utilize muitas perguntas diretas (aquelas cujas resposta é um sim ou não). Isso leva ao risco de péssimos profissionais não levar em consideração o diagnóstico diferencial, que é quando o profissional de saúde mental avalia se o que está sendo dito se enquadra realmente naquela condição ou se é apenas um sofrimento que faz parte do cotidiano. Por exemplo, uma vez eu vi uma palestra de uma pessoa que se apresenta como especialista e afirmava que, se uma pessoa gosta de fazer amizade com pessoas introvertidas e se tem um paladar seletivo então ela seria autista. Essa "profissional" esquece que é bem comum, após uma determinada idade, pessoas preferirem se sentir mais a vontade com pessoas discretas, além disso, paladar seletivo não é algo exclusivo de autista mas de pessoas que conhecem aquilo que gosta. A característica do paladar seletivo da pessoa com autismo costuma se diferenciar das demais pela sua intensidade, o que uma pessoa nessa condição poderia descrever melhor. No Brasil há casos de pessoas com diagnóstico errado mas isso não justifica argumentar que o autismo é algo inexistente fruto de um "capricho". Quando o diagnóstico é bem feito, contribui para ajudar tanto a pessoa com essa condição quanto as demais que vivem em seu entorno. 

A Diferença Invisível é uma excelente obra que mostra de uma maneira clara o sofrimento que é viver em uma sociedade ignorante sobre autismo e que não aceita que pessoas possam ter a sua vida sem tanta relações sociais desnecessárias. A obra consegue mostrar visualmente como a pessoa autista sente o cotidiano e possibilita tanto ajudar quem ainda não se descobriu nessa condição como pode ser útil para as demais pessoas entendem melhor sobre esse fenômeno a ponto de identificar e abandonar os seus preconceitos. 


Página interna de A Diferença Invisível

Ficha técnica: 
Publicado em: junho de 2017
Editora: Nemo
Licenciador: Delcourt
Categoria: Edição Especial
Gênero: Europeu
Status: Edição única
Número de páginas: 196
Formato: (17 x 24,5 cm)
Preto e branco/Lombada quadrada

Preço de capa: R$ 44,90

Leia também da Editora Nemo: 





Comentários