Até o final do século passado, as histórias em quadrinhos eram uma arte feita basicamente por homens heterossexuais brancos para leitores homens heterossexuais brancos. Aqui e acolá a narrativa trazia alguns personagens fora desse perfil mas com uma representatividade limitada a uma figura sofrida, a um alívio cômico ou ao vilão da história. O século XXI mostra que limitar a narrativa a um ponto de vista não contempla a um público cada vez mais plural. As artes demonstram que há espaços para que histórias antes escondidas agora são uma opção para quem quer conhecer outras histórias. Essa é uma coletânea em que vários artistas da comunidade LGBTQI+ se apresentem e deixem a sua mensagem, inclusive alguns deles já estão há algum tempo no mercado de quadrinhos. Além de HQs, a obra abre espaço pra artigos feitos sobre a mesma temática. Em julho de 2021 a Editora Skript publicou essa obra.
Apesar de serem histórias curtas, elas têm em comum o fato de tratarem sobre amor, tanto sobre relatos da vivência desse sentimento quanto mostrar como sobreviver com a ausência dele. Isso porque a comunidade LGBTQI+ ainda sofre com a intolerância heterossexual que impõe uma norma ao comportamento de todas as pessoas. Para os intolerantes, ignorar não é o suficiente, eles sentem a necessidade de debochar, humilhar, bater e até matar. O preconceito atinge essa comunidade das mais diversas formas. Quando eu fiz pesquisas para editar esse texto me deparei com a página da hq no Guia dos Quadrinhos lá os leitores podem inserir notas e esse quadrinho está avaliado no dia de hoje com a nota mínima por apenas um leitor (pelo visto ignorar a obra por quem a despreza não foi uma possibilidade viável).
Porém há um caminho inverso, heterossexuais que entendem que a existência de pessoas com uma vivência de desejo ou de uma outra sexualidade não vai colocar a sua própria sexualidade em risco. Pelo contrário, é na compreensão do sofrimento e das alegrias de comunidades além da sua que vai possibilitar uma harmonia social de fato. Além disso um livro como esse ajuda a acolher várias pessoas que estão com a auto-estima afetada por acharem que o seu desejo ou comportamento é algo errado ou doentio, o encontro com pessoas que passaram pelas mesmas dificuldades ajuda a libertar muita gente não aceita por uma sociedade que cultiva valores preconceituosos.
A obra como qualquer coletânea traz histórias com artistas de qualidades bem diferentes entre si. Em um determinado momento eu percebi que algumas histórias traziam uma temática repetida e eu queria que houvesse histórias que abordassem outros temas. Por outro lado, tanto as histórias quanto os artigos traziam um quê de um manifesto que para mim soou como: a comunidade LGBTQI+ existe tanto nos quadrinhos brasileiros quanto na pesquisa acadêmica sobre quadrinhos. É uma pena que a sociedade ainda se escandalose tanto com algo tão natural quanto sexualidade ou amor. O próprio termo Queer é um termo depreciativo que significa "esquisito" mas que a comunidade resolveu dar uma nova conotação e desarmar esse termo ofensivo.
O que eu posso destacar da leitura que fiz foi: Short Story de Adri A. que conta a história de um garotinho que perdera a mãe e passou a conviver com um pai ainda sem jeito para lidar sozinho com a criação do filho, a situação se complica ainda mais quanto o garoto se encanta perdidamente com um short rosa. O que me cativou nessa história foi o fato do autor não ter retratado o pai como um homofóbico típico mas como um homem preocupado sobre a violência que a criança teria que lidar quando a sociedade percebesse que ele não possuia um comportamento do "menino veste azul, menina veste rosa". Em uma outra história, Diana Salu trouxe importantes reflexões sobre o uso de personagens trans por roteiristas cis. Isso me lembrou de uma matéria sobre os bastidores da série Supergirl que traz uma personagem trans, a Sonhadora, a matéria dizia que no set não havia essa visão tão compreensiva entre a sexualidade dos atores e equipe. Eu também destaco a história de Luiza Lemos que se representa dando grandes lacradas em frases intolerantes disfarçadas de dúvidas de pessoas heterossexuais. Por fim eu quero falar do início, o texto muito forte escrito pelos organizadores da obra Ellie Irineu, Gabriela Borges e Guilherme Smee que já nos coloca no ritmo da leitura. É perceptível o carinho com que foi tratada a edição em seus detalhes, eu só senti falta de ter orelhas no livro.
"Ninguém vai virar gay ou trans só por ter lido um quadrinho feito por um autor LGBTQ+ ou por ver um casal homoafetivo se beijando num gibi." (Mário César) Quadrinhos Queer é uma ótima coletânea que possibilita conhecer artistas e pesquisadores da temática de gênero nos quadrinhos e que fazem parte da comunidade LGBTQI+. A obra além de trazer pontos de vistas diferenciados acaba trazendo autores que utiliza da narrativa em quadrinhos de uma maneira bem inusual. Para mim, a qualidade das histórias dessa obra possibilitou conhecer ótimos nomes pra ficar de olho na sua produção artística.
Ficha técnica:
Publicado em: julho de 2021
Licenciador: sem licenciador
Categoria: Edição Especial
Gênero: Alternativo
Status: Edição única
Preço de capa: R$ 99,00
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