A Origem do Mundo - Uma História Cultural da Vagina ou A Vulva vs. O Patriarcado

 


O fato de durante séculos os pesquisadores poderem ser exclusivamente homens fez com que o corpo e a mente feminina fosse um baú misterioso no qual o máximo que se conseguia era especular sobre o seu conteúdo. Esse livro mostra com bom humor como isso se deu através dos séculos apresentando essa pesquisa em quadrinhos. A editora Companhia das Letras no Selo Quadrinhos na Cia publicou essa HQ em 2018. 

A quadrinhista sueca Liv Strömquist mostra situações inusitadas sobre como se dava o estudo sobre o corpo das mulheres. Homens olhavam, por exemplo, para o tamanho de um clitóris e deduzia toda a personalidade da mulher a partir disso. Ela mostra o quanto a fragilidade masculina possibilitou teorias absurdas que mantinham a mulher fora de qualquer estudo acadêmico (se inteligente então frígida) e ao mesmo tempo a faziam ter muita vergonha do próprio corpo ou do seu desejo. As consequências disso ainda perdura (e voltou com muita força nos últimos anos). 

Nos meus 15 anos de atuação como psicólogo, encontrei com uma certa frequência mulheres que não conheciam que havia prazer nas relações sexuais, outras que nunca haviam se masturbado ou chegado ao orgasmo e até situações de mulheres com tratamento de ansiedade mas que na verdade o que mais a afetava era se auto impedir de ter relacionamentos lésbicos ainda que seus filhos já soubessem da sua sexualidade. Essas não são situações relatadas por adolescentes descobrindo a sua sexualidade, são relatos de mulheres adultas e idosas com uma vida sexual ativa (as vezes de maneira dolorosas por falta de lubrificação do canal vaginal). 

Se esses são apenas alguns dos vários problemas do auto-desconhecimento do corpo feminino imagine como isso funciona nos homens! A autora nos faz rir dos diversos mitos e teorias ridículas registrados nos mais diversos livros de referência escritos por homens. Se os "detentores do saber" são assim, imagine a ignorância do homem hétero comum. O protagonismo masculino se auto-intitulou como o guia da relação como exemplo eu deixo a expressão "vou lhe jogar na cama e lhe fazer mulher" para designar uma relação sexual e mostrar que a passagem da adolescência para a idade adulta na mulher só ocorre depois da primeira relação sexual com o homem. Contudo toda a certeza vem de informação desencontrada sobre a sexualidade e o conforto gerado em ter estabelecido que qualquer refutação é fruto de "mulheres com desequilíbrio emocional". Eu nem acho que a ciência que estuda a mulher deva ser feita exclusivamente por mulheres, mas que os pesquisadores homens façam pesquisas que possibilitem escutar a vivência das mulheres sobre aquilo que sentem e assim evitar deduções bizarras como as que foram feitas durante séculos. 

O livro me trouxe não apenas curiosidades sobre situações históricas mas informações desconhecidas a mim já que eu, como imerso nessa sociedade, mantenho algum grau de ignorância sobre o corpo e mente da mulher. Uma situação curiosa durante a minha leitura é que o livro ironiza muito a vergonha que aprendemos a sentir com o corpo da mulher seja por causa da vulva ou da menstruação e em alguns momentos o local que eu tinha para ler foi uma praça pública e ali foi inevitável que eu sentisse uma vergonha dupla: vergonha por alguém passar e ver os desenhos da genitália feminina e vergonha de mim por eu estar sentindo vergonha disso. 

Ainda com relação a leitura, o quadrinho tem um ótimo roteiro com muita informação e por isso a autora preferiu utilizar do humor para evitar o tédio de transformar seu livro num manual. É bem verdade que fazer humor de situações tão ridículas como as que a autora mostrou não é tão difícil contudo o roteiro sabe como conduzir esse tom do início ao fim. O traço de Strömquist é feio mas combina com a proposta de um humor que está ali para contrariar propositalmente as estruturas do que é certo e errado, feio e bonito. Nos quadrinhos a qualidade da arte está muito ligada ao efeito que ela pretende causar, e os desenhos do livro com traços muitos simples conseguem tirar risadas através de sutilezas que é a maior qualidade da autora enquanto desenhista. Para mim, assim como a voz feia do Chico Buarque me encanta em todas as suas músicas o traço feio de Strömquist me diverte. 

A Origem do Mundo é uma ótima pesquisa em quadrinhos pelo seu caráter informativo, por trazer reflexões pertinentes e principalmente por ser bem sucedida na linguagem escolhida. O quadrinho é convivente ao mostrar o desastre que foi colocar nas mãos de religiosos e cientistas machos para descrever o corpo e a mente feminina. Um quadrinho que contribui de diversas formas às mulheres mas que é ao mesmo tempo tão útil (ou mais útil) para os homens numa sociedade que valoriza conteúdo com corpos nus e sexos explícito mas conhece tão pouco sobre educação sexual. 

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Ficha técnica:

Preço: 73,00

Tradução: Kristin Lie Garrubo

Páginas: 144
Formato: 19.70 X 27.00 cm
Peso: 0.372 kg
Acabamento: Livro brochura
Lançamento: 22/06/2018

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