Tiodora foi uma mulher africana que foi arrastada para o Brasil no Século XIX, porém cansada de sofrer com a condição de escravizada, resolve pedir ajuda ao seu marido e filho que estavam distantes, para isso ela resolve escrever uma carta ou uma mukanda. O premiado quadrinhista paulistano Marcelo D'Salete traz elementos que contextualiza a fundação da cidade de São Paulo sob um olhar de quem sofreu com o absurdo da escravidão. Esse quadrinho foi publicado pela Editora Veneta em novembro de 2022.
As últimas obras de Marcelo D'Salete (Cumbe e Angola Janga) trazem uma contribuição ímpar para a História do Brasil que costuma ter publicações com um ponto de vista do branco colonizador. Porém uma parte significativa dos brasileiros são provenientes de pessoas escravizadas que foram trazidas da África. As obras mencionadas, assim como essa, são frutos de uma vasta pesquisa que foi referência para os diversos detalhes presentes na obra desde os acontecimentos do roteiro quanto detalhes de vestimenta, arquitetura e paisagens naturais. Nessa obra em específico, há referências de vários acontecimentos ou personagens históricos que tiveram uma contribuição relevante na época, os quais vale citar a Guerra do Paraguai e Luiz Gama.
O autor evitou fugir do óbvio que seria contar a vida do abolicionista e resolveu criar um enredo a partir da vida de uma mulher escravizada que, para sobreviver, resolveu pedir para um amigo escrever uma carta. A partir daí, o foco da narrativa passa a ser as dificuldades para que a mesma chegue ao seu local de destino e nesse percurso é possível ver as diversas características da sociedade da época.
Logo de início o traço já me chama a atenção pela expressão cansada de Tiodora e Claro Antônio dos Santos. Esse cansaço não se refere ao cansaço de quem fez horas fazendo uma atividade física mas é uma expressão de quem está cansado de viver naquelas condições desumanas. Essa é uma condição que se percebe também na maneira como os brancos referem-se aos escravizados: peça. Uma época em que ter uma pele negra era sinal de que estava fora da condição de ser humano, pelo contrário, o negro era um outro ser vivente que tinha a função de servir e para evitar qualquer sentimento de culpa, a Igreja afirmava que nós éramos seres sem alma e isso era o suficiente para justificar quaisquer atrocidades. Não é à toa que Tiodora era escravizada por um cônego, um líder religioso que sabia de cor que um dos mandamentos mais importantes era amar ao próximo como a si mesmo. Porém ele obrigava Tiodora a vender coisas na rua para trazer dinheiro a ele.
Um outro aspecto relevante na obra é a maneira como ela é narrada. É evidente que o sofrimento negro está presente de maneira intensa mas a sua presença não se resume a isso. As pessoas pretas não estão a espera de serem violentadas mas D'Salete traz personagens que definem o próprio destino seja tanto pelas ideias, como Luiz Gama, quanto pela atitude dos negros libertos nos quilombos. Isso acaba fazendo uma ponte com um dos extras da obra: a cronologia de luta contra a escravidão. Uma sequência de fatos históricos que mostram que a condição legal da escravidão não se encerrou pela "nobre atitude" de uma princesa branca que assinou uma folha de papel mas foi proveniente de diversas lutas em diversos locais do Brasil de um povo que se recusou a aceitar esse absurdo e estava adquirindo um número maior de adeptos nos seus movimentos de libertação.
A leitura gerou diversos impactos em mim tanto pela maneira como o autor vai colocando os elementos históricos, a condução da trama como a expressividade dos personagens e a sua dinâmica principalmente nas cenas de ação. Em particular a leitura trouxe uma lembrança com o quadrinho piauiense A Voz de Esperança Garcia. Se D'Salete reescreve a História de São Paulo com a perspectiva da carta de Tiodora, João Luís faz o mesmo com Esperança Garcia. Ambas as obras relacionam-se com personagens que encontraram em cartas o meio físico no qual depositar a sua esperança em melhoria da sua condição numa realidade em que poucos sabiam ler. Por isso, em ambas as obras, uma carta ser um documento que nas mãos certas poderiam causar um impacto necessário. Além disso Esperança e Tiodora são mulheres reais que recusaram se conformar e buscaram meios para serem protagonistas dentro de uma realidade que a tornavam seres invisíveis. Por isso ambos os materiais são maneiras de olhar o Século XIX de uma perspectiva não colonialista.
Mukanda Tiodora é mais um excelente quadrinho desse autor que é o meu preferido na atualidade pelo minucioso trabalho de pesquisa que reescreve a História do Brasil com o ponto de vista das pessoas que foram exploradas. D'Salete tem uma rara habilidade de emocionar com o seu traço e de saber envolver o leitor na sua narrativa, possibilitando construir uma trama cheia de ação representando as pessoas negras como protagonistas na luta contra a escravidão. Essa é uma obra envolvente e que preenche as lacunas do que significa ser brasileiro.
Ficha técnica:
Publicado em: novembro de 2022
Licenciador: Marcelo D´salete
Categoria: Graphic Novel
Gênero: Alternativo
Status: Edição única
Formato: (16 x 23 cm)
Preto e branco/Capa dura
Preço de capa: R$ 79,90
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