A Voz de Esperança Garcia - uma história inspirada na vida da piauiense escravizada considerada a primeira advogada do Brasil


 Em 1770 numa fazenda onde hoje fica localizada a cidade de Nazaré do Piauí, uma mulher escravizada, não suportando as torturas pelas quais vinha passando, escreveu uma carta para denunciar o que estava se passando e pedir ajuda. Essa mulher é Esperança Garcia que vinha sendo obrigada a servir no plantio mas foi incumbida a trabalhar na cozinha para o homem que tinha a posse da sua vida. Esperança contudo não era uma pessoa submissa e por isso teve embates com o capitão que não aceitava insubordinação dos seus escravos. A Editora Quinta Capa, através do projeto Rumos Itaú Cultural publicou em junho de 2023 esse romance inspirado nessa figura histórica. 

O piauiense João Luís conhecido como Pikachu fez a pesquisa e o roteiro dessa história. Ele é conhecido da sua coluna no site 180 Graus chamada Balaio Cultural . Após décadas lendo quadrinhos, ele resolveu fazer um roteiro de uma romance gráfico.

Nesse quadrinho Pikachu se permite utilizar muito texto. Para mim, não acho que quadrinho tenha que ter pouco texto, eu acredito que o tamanho do texto está bem vinculado com a qualidade da escrita. Os argumentos desse quadrinho por exemplo são ótimos e exige do leitor que esteja disponível para a apreciação do texto, já que não é uma obra pra terminar em poucos minutos. A pesquisa feita associada a ideias que o autor quer demonstrar exige espaço para expor as suas ideias. É preciso também dar o contexto histórico, além de caracterizar a força daquela personagem que além de escravizada era uma mulher para uma sociedade racista e machista como a brasileira, o preconceito que ela sofria acaba sendo intensificando por essas condições. Além disso, Esperança assumia uma condição que a sociedade não permitia: a da mulher alfabetizada e com iniciativa para manifestar os seus pensamentos. 

Ainda que o autor no seu excelente texto introdutório afirme não querer associar a imagem da protagonista como a de uma heroína fora da curva, isso acabou ocorrendo e para mim foi necessário. A condição de negro no Brasil é retratada apenas pela imagem passiva de sofrimento. Eu sinto falta de obras de ficção com personagem de atitude que inspire. Além disso, eu escrevo isso por ser de um Estado cuja História foi invisibilizada e que aos poucos vem se apresentando. Eu sou um piauiense que nos tempos de escola, por mais que eu pesquisasse, não tinha informação nem sobre indígenas e nem sobre as pessoas escravizadas que viveram por aqui. É claro que essa obra traz muitos elementos sobre o Estado mas está longe a limitar-se a ser uma mera descrição de um acontecimento local. A Voz de Esperança Garcia é uma história que traz inspiração de resistência nacionalmente e não foi à toa que a OAB a reconheceu como a primeira advogada do Brasil. A qualidade da sua petição compreendida dentro de um contexto de escravidão demonstra o valor que esse documento escrito possui até hoje. 

Os desenhos dessa obra são de Bernardo Aurélio que além de quadrinhista, dono da Editora Quinta Capa, é historiador. O que eu mais gosto do traço de Bernardo é a ambientação principalmente quando ele detalha a arquitetura do Século XVIII. Porém uma obra como essa tem uma complexidade que afeta inclusive sobre como os desenhos serão representados. O argumento de Pikachu traz emoção e não minimiza o sofrimento pelo qual a protagonista estava passando. Contudo o traço de Bernardo é cartunesco e isso traz um contraste. O sofrimento pelo qual as pessoas negras vem passando desde a colonização serve muitas vezes como entretenimento para pessoas brancas. Talvez por conta disso, as cenas em que Esperança era torturada não estavam tão detalhadas. Nesse ponto específico eu preferiria que o desenho do sofrimento fosse melhor representado. Eu penso que a narrativa mostra que a atitude da protagonista foi motivada pelo sofrimento pelo qual passou, essa acaba sendo uma história de superação e denúncia e, por conta disso, o mal estar que a condição absurda da escravidão deveria estar além do texto, mas nas imagens principalmente porque as características do texto já deixa claro que não é uma obra infantil. Porém eu entendo que essa não é uma decisão simples e que os autores podem ter optado por evitar o ofensivo e doloroso estereótipo do negro torturado. 

Um outro aspecto a se destacar são as páginas que iniciam cada um dos oito capítulos com imagens da cultura africana e com um texto explicando o seu significado e como eles estão associados a vida da personagem. Um detalhe que engrandeceu a obra e soube ser um complemento interessante e respeitoso. Com isso a obra faz um gancho entre Brasil e África a partir de representações que surgiram através da relação entre costumes em comum entre os países desses dois continentes. 

A Voz de Esperança Garcia é um excelente quadrinho que pode surpreender o leitor pelo fato do roteirista estar iniciando como quadrinhista. Porém quem já acompanha a escrita de João Luiz não se surpreende, por saber que vai encontrar ali um ótimo texto. A obra optou por não explorar a dor da tortura das pessoas escravizadas porém pelo aspecto da obra de denúncia e superação faria sentido em mostrar em imagens o quanto aquele período foi terrível demais pra caracterizar pessoas escravizadas como "preguiçosas" ou minimizar o horror desse período com piadas sobre algo tão hediondo. De qualquer forma eu indico a leitura para quem nunca leu quadrinhos e para quem acompanha há muito tempo, até porque finalmente podemos ter acesso a importantes figuras históricas que deveriam ter sido conhecidas há bem mais tempo. 

Compre aqui a edição física ou baixe gratuitamente a edição digital

Leia também da Editora Quinta Capa:

Máscara de Ferro - Contra a Televisão

Cenouras Malditas - uma compilação de histórias curtas de Luís Celso o mototaxista dos quadrinhos

Máscara de Ferro vs Zumbis - o retorno do herói piauiense

Caio Oliveira Apresenta: All Ripster Marvel

Caio Oliveira Apresenta - Alan Moore o Mago Supremo

Comentários