O amor pode ser um sentimento vivenciado por um casal e que só cabe aos dois desfrutá-los da maneira que quiser, já que a intimidade não deveria ser algo regrado pela sociedade. Essa é uma história de amor entre uma travesti prostituída e um policial, porém vale o aviso de gatilho: se você não está bem emocionalmente ou cenas de violência lhe afetam muito, não leia esse quadrinho. A Brasa Editora publicou esse quadrinho em outubro de 2021 a partir do financiamento do Edital do PROAC do Governo do Estado de São Paulo juntamente com uma campanha de financiamento coletivo.
O gaúcho Sandro Lobo não utiliza de muitas palavras no argumento do seu quadrinho e nem por isso o seu roteiro tem menos impacto. Isso porque numa sociedade tão conservadora quanto a brasileira, ainda é escandaloso estar fora de qualquer norma e é esse sentimento de estranheza que autoriza pessoas que se consideram normais a abusar delas. Lobo mostra na história como a violência está presente numa sociedade conservadora das mais diferentes formas, as vezes de uma maneira tão sutil como se fizesse parte do cotidiano.
A história é permeada pelo contraste entre a vivência de um amor intenso e carregado com muita beleza com o ódio movido pela intolerância. O fato de ser um casal formado por um homem cis gênero e uma mulher trans faz com que a sua relação se limite a porta da sua casa. Dali para fora os dois seguem a sua vida como se nem se conhecessem. Sereia sobrevive como pode, assim como ela, muitas outras só tem como alternativa a prostituição como fonte de renda, aí só a sorte pode ajudá-la cada vez que ela entra num carro de um estranho que quer fazer um programa.
O outro parceiro da relação é Paixão, um policial que tem aversão aos abusos praticados por alguns colegas de farda, dentre os abusos está a maneira preconceituosa como eles tratam a comunidade LGBTQIA+. Paixão tem carregar consigo o silêncio, porém viver em meio a pessoas tão preconceituosas o tira toda a paciência. O protagonista carrega consigo um forte sentimento de justiça e não se contém quando a violência normalizada é arroz.
O peso maior da HQ está na força do traço do paulista Alcimar Frazão. Ele faz questão de detalhar tudo o que é possível tanto nos seus personagens quanto o cenário que é a cidade do Rio de Janeiro e nela os seus contrastes sociais que podem ser percebidos ao cruzar uma rua. Tocou-me quando no desenho ele insere animais que estão na cena com um olhar julgador como se estivessem perplexos pela crueldade humana com que as pessoas lidam entre si. Os detalhes do seu traço deixa as cenas ainda mais impactantes. Além disso a qualidade da arte exige que a gente diminua a velocidade da leitura para poder apreciar melhor cada quadrinho.
A Brasa Editora caprichou nos detalhes da edição que além de capa dura, traz as pontas das páginas vermelhas que possibilita que a borda interaja com as cores da capa. Além disso, a HQ conta com o conforto do papel pólen e com direito a fitilho pra marcar as páginas.
A leitura da obra não surpreendeu nas primeiras páginas, já que mostrava o duro cotidiano dos personagens mas que até então não era uma novidade. Após a reviravolta, quando o tom dramático toma de conta, a leitura traz um outro fôlego. Há um crescente de indignação com a sequência dos fatos, acentuado pelos detalhes da beleza que era a relação entre os dois até chegar a um final que a gente não sabe o quê pensar. O fato é que a gente começa curioso mas não consegue sair indiferente, algo parece incomodar e diversos pensamentos tomam de conta. Ainda bem que há textos complementares de Monique Prada e Priscila Fróes que ajudam a organizar toda a confusão de reflexões e sensações que a leitura trouxe.
Lovistori é um excelente quadrinho que não poupa o leitor de fortes emoções tanto pelas verdades do roteiro quanto pelos diversos impactos que o traço nos causa que só o contraste do preto e branco pode proporcionar. O que há de melhor na leitura é o incômodo que ela nos traz fazendo com que inevitavelmente a gente passe um bom tempo refletindo sobre alguma situação ali mostrada.
"Por que vocês, cis heteronormativos e homens cis em especial, são tão cruéis conosco? Qual a ameaça real que oferecemos a vocês?" (Priscila Fróes)
Ficha técnica:
80 páginas
Impresso em Pantone especial
Formato 210 x 277 mm
Capa dura
Fitilho marcador de páginas azul
Pintura trilateral rosa
Miolo em pólen bold 80g
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