Muita gente ainda tem a concepção infantil de entender a realidade dentro de dicotomias: bem e mal, certo e errado, masculino e feminino, igual e diferente; isso acaba sendo um prato cheio para trambiqueiros se aproveitar dessa visão simplista para conseguir convencer pessoas a acreditar no que eles queiram. O roteirista e pesquisador Enéias Tavares estudou a obra de William Blake e construiu uma história ambientada em São Paulo com personagens que subvertem o estereótipo moral. A Editora AVEC publicou essa obra em 2019.
A Igreja da Orquestra Divina é comandada pelo Maestro Santos onde em meio a suas pregações sobre como se portar e a suabatuação como um chefe de uma família tradicional, organiza o tráfico de drogas e aproveita da sua vida com prostitutas e festas regadas a muita bebida e droga. Quando algo representa risco aos seus interesses, ele envia Chico Amarante para matar os seus desafetos, num desses serviços, o assassino deixa a garota Yumi como a única sobreviente da família. Distante dali, entre várias prostitutas que servem a alta cúpula dessa Igreja, Verônica Viegas decide vingar o assassinato de uma colega. Para juntar-se aos personagens temos a artista Dani que também vende drogas para o Maestro.
Já deu pra sentir que o enredo subverte qualquer ideia pré concebida de bem e mal né? Com uma crítica social intensa, Enéias Tavares traz uma história bem comum do mundo real, recheada por tanta hipocrisia vivida pelo "cidadão de bem". O mundo seria bem mais fácil de entender se a vida real fosse igual as dicotomias que encontramos nas novelas mexicanas de maiores sucesso. Contudo a relação entre as pessoas é muito mais complexas e ignorar isso só deixam as pessoas mais vulneráveis. Não é a toa que há tanta gente poderosa desfrutando do bom e do melhor em cima da fé alheia. Para muitos a ideia de "se fala em Deus logo pessoa boa" é muito recorrente e acaba facilitando a vida de aproveitadores já que basta convencer os fiéis de que "o estão perseguindo por pregar a verdade divina". Eu não quero dizer com isso que todo líder religioso é trambiqueiro, mas que fica difícil destinguir o joio do trigo se a pessoa tende a acreditar que tudo é trigo.
A história nos leva a refletir sobre quais valores são realmente importantes para que a gente possa identificar quem a gente pode investir a nossa confiança. Além disso a narrativa é muito bem construída e bem redondinha. Se de início dá a impressão de ser algumas histórias soltas, o roteiro consegue se encaixar muito bem e chega a um final satisfatório.
Os desenhos são de Fred Rubin com a o seu traço que é simples e tão expressivo. Nessa HQ eu destaco a cena de sexo em que o artista mostra uma habilidade de tornar a cena intensa apenas utilizando de recursos gráficos sutis. O aspecto que não me agradou tanto foram o extras que ficaram longos, talvez eu tivesse apreciado mais se trouxesse detalhes sobre o estilo e a obra de William Blake num texto não tão acadêmico.
O Matrimônio do Céu e Inferno é uma excelente história em quadrinhos tanto pela crítica de costumes quanto pela condução da trama. Uma obra recomendada para quaisquer leitor adulto que faz questão de um roteiro pé no chão e cheio de referências. Uma obra que agrada tanto ao leitor veterano de HQs quanto aos admiradores da obra de William Blake.
Publicado em: maio de 2019
Formato: (16 x 23 cm)
Colorido/Capa dura
Preço de capa: R$ 66,60
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