Falar mal dos anos 90 é o esporte preferido dos colecionadores de quadrinhos, eu particularmente adoro, contudo nem tudo lançado na década foram apenas raios, mulheres seminuas e textos rasos. Eu falo muito mal porque os quadrinhos de heróis que mais venderam tinha esse apelo já citado. Entretanto essa história tem um outro lado, o da produção excelente que contribiu não apenas para que a Marvel não entrasse em falência mas para que provasse que quadrinhos enquanto linguagem permanecia relevante e que há vida inteligente fora dos títulos que vendiam milhões de cópias. Esse não é um texto jornalístico até porque eu gosto da ideia do Garimpando Hqs ser um blog e portanto a lista comentada é baseada na minha coleção e eu deixarei de mencionar muitos outros que mereciam a citação, esse texto surgiu após eu participar do podcast do site Quinta Capa comentando da experiência de ser colecionador nos anos 90 (ouça aqui!) .
Marvel
Hulk
Para iniciar, eu quero falar do meu xodó pessoal, o Hulk do Peter David. O roteirista foi quem mais fez histórias do personagem e isso não foi à toa, após o Gigante Esmeralda penar com roteiristas que não estavam conseguindo deslanchar nas vendas, David pegou o título e com o tempo passou a deixar muita gente feliz. Quando eu comecei a comprar lançamento de quadrinhos em banca na adolescência, eu passei a seguir o título do Hulk que trazia uma versão vendida como definitiva do personagem. Hulk e Bruce Banner era uma coisa só e passaria a ser assim e pronto. O personagem passava a ser um herói na sua essência e não mais um monstro ingênuo que mal sabia falar, um prato cheio pra um adolescente de 14 anos. Porém em meio a salvação do mundo e outra, o autor inseria no enredo questões sociais como preconceito, dilemas e detalhes sobre a personalidade e a vida pessoal do personagem que eu não imaginava e possibilitou que eu entendesse o quanto o Hulk é complexo.
Após o desastre que foi Heróis Renascem a Marvel resolveu colocar os pés no chão e dar equipes criativas de qualidade para seus personagens. Assim o Capitão América foi premiado com Mark Waid e com isso acabou abocanhando prêmios. O roteirista evita utilizar coisas estravagantes como escudo de energia ou armadura que voa, ele busca a essência do herói que, como explica muito bem Silvio Almeida, é aquele ícone que representa um EUA que nunca vai ser, por isso esse Sentinela da Liberdade se incomoda de ser tão endeusado e entende que os seus ideais estão acima de qualquer governo, assim se há pilantragem ali, não é ele quem vai passar pano.
Um outro que conseguiu resgatar a sua popularidade após fases ruins foi o Demolidor. Em 1998 a Marvel convida o cineasta Kevin Smith para escrever e ele junto com o desenhista Joe Quesada decidem colocar o personagem num embate religioso e com isso fazer um quadrinho para um leitor com mais maturidade. A história foi muito bem sucedida principalmente pro Quesada que pouco depois disso assumiu como editor-chefe da Marvel e possibilitou que a primeira década do Século XXI tivesse muito material excelente.
DC COMICS
Liga da Justiça
Quando a Liga da Justiça foi reformulada após Crise nas Infinitas Terras, ela não pôde contar com os maiores heróis da Editora. Por isso J. M. DeMatteis e Keith Giffen resolveu pegar qualquer um que tava passando na rua pra compor a equipe. Isso só poderia dar certo se fosse uma grande piada, resiltado: muitas vendas. Mas como piada longa perde a graça, essa Liga da Justiça demorou mais do que deveria e as equipes criativas sucessoras não agradaram em nada. Isso durou até Grant Morrison assumir os roteiros e colocar os sete maiores heróis da DC e fazer um título que foi tão significativo que inspirou uma série animada anos depois. A Liga agora inspirava seriedade e trazia excelentes histórias a ponto de Neil Gaiman autorizar uma participação especial do Sandman na equipe.
O Reino do Amanhã
A Image Comics estreou com seus quadrinhos carregados de muita violência e inspiroraram uma mudança no conceito de heroismo e isso mudou a forma da Marvel e da DC fazer quadrinhos. Logo a DC estava substituindo os seus heróis por versões mais sem noção e com novos uniformes, simbolizando a "evolução". Mark Waid resolveu imaginar um futuro de como ficaria a Terra cheia desses seres de moral questionável e mostrou o quão seria desagradável e desastroso. Assim ele usa esse enredo pra fazer uma mini-série que busca resgatar os clássicos e a essência do que é ser um herói (tema bem recorrente nas suas obras).
Enquanto a DC decidiu tomar um caminho errado com os seus personagens durante os anos 90, a editora Karen Berger vinha correndo por fora disso desde o final dos anos 80 e viu que era possível fazer dentro da Editora quadrinhos com temáticas bem mais complexas. Por isso ela convidou roteiristas britânicos para utilizar personagens que estavam ali esquecidos. Ela foi ali comendo pelas beiradas e a DC acabou criando um selo próprio pra ela chamado Vertigo voltado para leitores adultos. Detre os títulos havia Shade O Homem Mutável. O destaque desse personagem é que os poderes dele estão relacionado com a loucura das pessoas ao seu redor e acaba fazendo um quadrinho psicodélico e muito interessante. Eu lamento o fato da Editora estadunidense não ter republicado na íntegra o título em encadernados.
BONNELI
Geralmente o leitor brasileiro só descobre fumetti após completar 30 anos, eu faço parte do grupo que cometeu esse erro. É por isso que eu falo tão pouco da Editora Bonelli aqui no blog. Eu tive a sorte de descobrir Julia Kendall que começou a ser publicado em 1998 na Itália. Apesar do quadrinho ter o lado ruim de retratar de forma bem estereotipada uma personagem negra que é recorrente das histórias e o autor cometer gafes com relação ao machismo no roteiro, Júlia é um quadrinho que coloca muito bem a teoria psicanalítica no contexto da solução de crimes, algo que poucos autores sabem representar qualquer que seja a mídia. Mesmo com os vacilos, numa situação ou outra, Júlia é uma mulher empoderada e humana que possui histórias muito interessantes e acaba se destacando entre os vários personagens homem-branco-hetero da Editora.
IMAGE COMICS
Rising Stars
Darwin afirma em outras palavras que ou a espécie evolui e se adapta as transformações do ambiente ou está fadado a extinção. Isso ocorreu com a editora Image. Ela foi formada com os maiores artistas da Marvel e prometeu muito. 30 anos depois a gente só sabe que os personagens existiram quando alguém da época o cita em textos ou programas saudosistas. Contudo a editora percebeu que poderia abandonar a sua fórmula e trazer ao seu público histórias fechadas que teriam pouco espaço na Marvel e na DC. Assim em 1999 J. Michael Straczynski publicou Rising Stars e mostrou que era possível fazer um título que poderia ter fim. Uma história que relaciona os tipos de poderes das pessoas com a sua história de vida e não é um fenômeno tão aleatório como os mutantes da Marvel.
DARK HORSE
Frank Miller decide sair fora dos super-heróis e dos valores morais que permeiam essa narrativa. Assim ele cria um mundo só dele chamado Sin City, um submundo com problemas sociais bem comuns no dia a dia de quem vive fora da segurança dos apartamentos. O artista aqui utiliza como muito poucos o preto e branco e o minimalismo trazendo uma narrativa que só poderia existir numa história em quadrinhos por saber utilizar tão bem a integração entre texto e desenhos.
INDEPENDENTE
Há pessoas que confiam muito numa ideia ou simplesmente resolve publicar uma história independente de quantas pessoas irão ler. Assim fez Jeff Smith quaindo resolveu publicar Bone. O sucesso veio e não a toa. Esse é o tipo de história que você pode ler com uma criança e ambos conseguem divertir-se com a mesma intensidade. Só lembrando que esse é um título dos anos 90 e algumas situações não eram vistas como problemáticas como hoje. Por exemplo um dos Bones é um fumante ativo de charutos e um outro detalhe é que na luta contra os monstros alguns deles acabam perdendo braços mas felizmente a página não fica encharcada de sangue. Assim se isso não for um problema pra você, experiente ler Boné seja sozinho ou com uma criança. O tamanho da obra certamente não vai assustar depois da leitura iniciada tamanha é a habilidade de contação de histórias que o autor demonstra.
Dizer que os Anos 90 é uma década perdida é mais meme do que uma realidade. Há uma produção excelente de quadrinhos seja em que ano for, seja em que país for dos cinco continentes. O que a gente precisa mesmo é manter a busca por boas histórias e não nos deixarmos levar por estereótipos ou frases feitas por quem pouco pesquisou quadrinhos a fundo nas diferentes eras e lugares.
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