Um local pode ser apenas um pingo num aplicativo localizador mas quando a nossa vida é construída a partir da relação com esse ambiente, aquilo deixa de ser uma localização e passa a ser o fruto de lembranças e emoções que só fazem sentido para aqueles que viveram. O espanhol Paco Roca trouxe essa graphic novel em que ele mostra momentos marcantes de sua vida e inevitavelmente nos faz refletir sobre a nossa. Em março de 2021 a Editora Devir trouxe esse quadrinho para o Brasil que foi vencedor do Prêmio Zona Comic de Melhor Quadrinho Espanhol de 2015 e escolhido como o Quadrinho de Maior Destaque do ano de 2016 pelo jornal Le Parisien.
A história inicia quando o autor (que também é um dos personagens) retorna a sua casa após o falecimento do seu pai, uma casa que estava abandonada e que precisaria que fosse recolhido alguns pertences além da necessidade de alguns reparos antes de ser posta a venda. Para isso, os seus dois irmãos e as suas respectivas famílias tiveram que ir lá para ajudar.
A história nos lembra que uma casa traz lembranças em cada detalhe do seu entorno. Cada personagem vai lembrando da relação que tinha com o falecido à medida que olha para uma planta, uma ferramenta ou alguma gambiarra inventada por ele. A hq é um exemplo do uso do conceito de fenômeno na medida em que cada coisa ou local passa a ganhar um significado específico a partir da vivência da pessoa. Quando eu estava lendo o gibi, me veio a lembrança de um som que tem na casa da minha mãe. É um aparelho multifuncional como qualquer outro fabricado nos anos 90 com funções de rádio, toca cd, toca fitas e toca discos. A tampa de plástico do toca discos está quebrada e sempre que eu vou lá eu lembro que foi meu pai quem fez aquilo com um murro após uma discussão entre volume do som entre os meus irmãos. Aquele pedaço de plástico quebrado me faz pensar o quanto eu devo ter herdado dele a minha pouca habilidade de lidar em momentos de muita raiva. É exatamente esse o efeito que o autor nos transmite, aquilo que era uma coisa nos remete a lembranças que acaba revelando de detalhes sobre a gente que mal conhecíamos.
Os desenhos de Roca são simples e cartunescos e no aspecto gráfico o destaque está na escolha da paleta de cores. Ela é quem guia a narrativa por ser o único detalhe que diferencia os acontecimentos atuais com as lembranças. Entre um quadrinho e outro a mudança de cores, além de determinar passado e presente, determina momento do dia em que a ação acontece. Além disso, o artista muda o gradeamento de uma forma tão criativa que ele acaba o utilizando como um elemento artístico e mantendo a sua característica de delimitação dos acontecimentos. A narrativa do quadrinho é muito rica e cada detalhe é importante para compreender a sucessão de acontecimentos, por isso o livro precisa ser degustado com a calma que as boas lembranças da vida merecem.
A Casa é um excelente quadrinho que apesar de não se focar em grandes cenas emocionantes ou reviravoltas, nos faz refletir sobre a importância das pequenas coisas que fazem parte da nossa história e que a gente costuma ignorar. Um quadrinho voltado para um público adulto de preferência que já esteja acostumado com narrativa em quadrinhos já que a interação com o texto e a arte são essenciais para a sua compreensão. Essa é uma obra tocante de um artista que utiliza muito bem dos vários recursos da nona arte.
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