Além das resenhas: Batman e o trabalho escravo


Além das resenhas é um tipo de texto que tem a intenção de divagar bem mais do que as resenhas que eu costumo publicar. Apesar dessa coluna ser nova, esse tipo de texto já aparece por aqui, ao final tem o link de alguns que eu publiquei com esse mesmo estilo. A proposta é pegar uma história como referência e a partir dela apontar sobre a situação real e em seguida concluir a resenha. Há textos como esse que traz várias referências sobre o assunto que eu estou citando, basta clicar na palavra diferente.

Em 2014, a edição número 28 da revista mensal do Batman trouxe um arco em duas partes com os títulos "Sem Voz" e "Anjo da Escuridão" que correspondem a primeira e a segunda parte. A história apresenta a trajetória de uma família de refugiados que vai aos Estados Unidos com vários sonhos mas encontra por lá trabalho em situação análoga a escravidão cujos ganhos são insuficientes para a sobrevivência. A mulher que chefia a família é demitida e cooptada pelos capangas do Pinguim para trabalhar nas suas indústrias especializadas em enfeites de Natal. A mãe e a filha (uma criança de aproximadamente dez anos passam a trabalhar contra a sua vontade. Uma das funcionárias dessa empresa escravagista se revolta e tenta assassinar um dos capangas, que com mais agilidade a arremessa de uma janela, Batman encontra o corpo que estava falecendo e decide investigar.

O país das maravilhas é também o que tem as maiores disparidades entre ricos e pobres entre os países industrializados. Se uma história assim é ambientada nos EUA, imagine a situação no Brasil. Em 2018, foram encontrados 1700 pessoas vivendo em situação de escravidão, pois é essa é a situação ENCONTRADA imagina os locais que ainda estão sem conhecimento de nenhuma fiscalização e mantém uma situação semelhante? 

Para piorar, o Ministério do Trabalho, o órgão responsável pela fiscalização das condições de trabalho, foi extinto e as suas atribuições foram divididas entre os ministérios da Justiça, da Economia e da Cidadania, sendo o Ministério da Economia o atual responsável pelas fiscalizações do cumprimento das leis trabalhistas. Até o momento, não foram apresentadas propostas para minimizar o problema da escravidão do Brasil e a extinção do Ministério do Trabalho passa uma ideia de descaso a isso. No dia 1 de maio, dia do trabalho, o presidente fez um pronunciamento para assegurar as empresas a liberdade sem interferência do estado mas em momento algum falou sobre os trabalhadores. Assim as empresas devem guiar-se a si mesmas, para favorecer o "progresso".

Para explicar a ironia, voltemos alguns séculos. A Revolução Industrial surgiu no século XVIII, as leis trabalhistas começaram a surgir quando a falta de uma fiscalização levou várias pessoas a morte ou a situação de esgotamento físico. As crianças trabalhavam em situações que prejudicavam o seu desenvolvimento até porque a ideia de criança como as temos hoje só começou a difundir-se no final do Século XVIII. Não é a toa que Gregg Hurwitz utiliza no roteiro da história do Batman um galpão cheio de crianças. Quando se despreza as leis trabalhistas e a importância é dada apenas a uma garantia de lucros exorbitantes para as empresas, é que situações atrozes como essa ocorrem. 

O autor do gibi traz as mulheres como as vítimas dessa exploração. Em vários países pobres, são as mulheres que assumem a condição de chefe da família, seja pelo abandono do marido, ou quando o homem não reconhece o filho como seu, cabe as mulheres a função de prover toda a família. Além de uma fragilidade física frente que facilmente pode ser aproveitada por homens que contratam uma segurança, a condição de mãe que pensa em sustentar os seus filhos, favorecem a aceitação de quaisquer condição de trabalho. Foi por causa disso que tragédias ocorreram e que as mulheres começaram a se unir cada vez mais a ponto de organizar o movimento feminista que tem a intenção de conquistar uma condição de igualdade aos dos homens.

A ascenção das ideias de extrema direita no mundo possibilitam que as condições de privilégios aos grandes empresários permaneçam e que a o trabalhador que não aceita se submenter a isso seja visto como ameaça. Assim pessoas comum lutam ou se calam com a perda de direitos adquiridos por séculos de lutas e acordos que favoreceram uma situação mais digna ao trabalhador ao mesmo tempo em que ampliou o mercado consumidor, já que o trabalhador que recebe valores dignos também consome e gira a engrenagem do capitalismo. É preciso entender o que gera a crise econômica mundial e entender que o melhor caminho não está no sacrifício do trabalhador. No Brasil, inclusive houve um exemplo contrário a isso. Em 2002 a taxa percentual de desempregados era de 11% e em 2012, o país atingiu e menor percentagem de desempregados com 5,7% sem retirar direitos dos trabalhadores. Em tempos de crise financeira, as primeiras proposições para solução é a retirada de direitos e o aumento de cobranças aos que ganham menos. 

É bem verdade que o Brasil não pode contar com o Batman para registrar nas Empresas Wayne os imigrantes em situação de escravidão, com a flexibilização de leis trabalhistas, o que a gente pode contar para, pelo menos buscar informações, é a imprensa. Nisso o Brasil tem os seus destaques, como o jornalista Leonardo Sakamoto que foi premiado nos EUA por sua luta contra o trabalho escravo.

O arco de Batman 28 traz uma excelente história sem balões e com algumas cutucadas para o leitor refletir como o nome da empresa do Pinguim chamar-se Natal Feliz LMTA. Gregg Hurwitz traz uma narrativa emocionante que encontra nos desenhos de Alberto Ponticelli um traço realista com muito movimento e cenas impactantes. Uma boa indicação de história que mostra que os heróis também podem ser bem utilizados para nos fazer refletir sobre problemas reais.

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