Dona Pepica é uma senhora obstinada a encontrar os restos mortais do seu pai no cemitério onde ele foi enterrado numa vala comum. Ele foi vítima da ditadura espanhola que condenava a morte qualquer pessoa que manifestasse ideias consideradas "subversivas". Com o auxílio de arqueólogos, Pepica busca cumprir a promessa feita a sua mãe de enterrar seu pai na cova dela. A partir daí é possível encontrar detalhes da vida não só de Pepe, pai de Pepica, mas dos acontecimentos dos anos 40 do Século XX do seu país. Esse quadrinho é baseado em relatos reais de pessoas que tiveram os seus parentes assassinados sem direito a dignidade de ser identificado e ter uma cova separada no cemitério. A Editora Devir publicou em maio de 2024 essa obra originalmente da Editora Astiberri.
Em 2009, no Brasil, o deputado federal Jair Bolsonaro esbravejou "quem procura osso é cachorro" sobre os familiares que procuravam o que sobrou dos corpos das pessoas assassinadas na Guerrilha do Araguaia durante a vergonhosa ditadura militar. Essa frase contribuiu para sua popularidade de tal forma que ele resolveu fazer um quadro com ela. Uma atitude cruel de deboche para familiares que sofrem até hoje em busca do que aconteceu com os seus. O Brasil possui o feriado de Finados para que as pessoas possam visitar aquelas pessoas importantes que não estão mais vivas e isso mobiliza milhares de pessoas a visitar, enfeitar túmulos, acender velas, rezar ou simplesmente querer estar perto de onde foi enterrado o corpo para lembrar de momentos importantes na sua vida e de ter a sensação de poder de alguma forma está próximo de uma pessoa querida. Por isso é tão contraditório políticos que utilizam da religião para se autor-promover, tratar assim do sentimento de familiares.
Um psiquiatra famoso chamado John Bowlby ficou conhecido por desenvolver a Teoria do Apego, com isso ele mostrou como as pessoas estabeleciam afeto uma com as outras, aprofundando-se nesse tema, ele também mostrou como o processo de perda da pessoa querida afetava quem já havia se apegado. Ele cita a importância de se velar o ente querido para que o cérebro inicie a compreensão de que aquela pessoa por quem a gente se apegou já não está mais presente. Por isso velar, acompanhar o enterro e visitar a pessoa falecida, permite que o cérebro se adapte a essa nova situação. Os seus estudos mostraram que pessoas que não passam por esse ritual tendem a ter a sensação bem mais intensa de que a pessoa falecida permanece viva, devido ao cérebro não reconhecer o rompimento (ou a mudança) do vínculo afetivo.
Os roteiristas espanhóis Paco Roca e Rodrigo Terrasa conseguem associar o caráter Histórico de uma época a partir da exumação de cadáveres. A obra traz o espírito saindo da vala mas como uma metáfora de que aquele ato permite encontrar detalhes sobre como a pessoa faleceu e demais detalhes da vida da pessoa: uma roupa perfurada, balas que ainda se alojam no esqueleto, deformações que deram-se antes do falecimento e outras curiosidades como a maneira como os corpos foram encontrados e alguns objetos estranhos que estavam ali na vala. Os arqueólogos, ao entrar em contato com as famílias das vítimas, escutam as histórias dos falecidos. Assim é possível saber quem eram, porque foram condenadas a morte e como isso ocorreu. A obra mostra que esses elementos vão se encaixando num quebra-cabeças que vai formando a História de uma época, algo que não é de interesse apenas daquelas famílias mas de toda uma sociedade que precisa entender o que aconteceu para aprender caminhos melhores que evitem a repetição daquele horror.
À medida que a trama se aprofunda a gente conhece um personagem que se destaca: o coveiro Leoncio Badía. Ele acabou desobedecendo algumas ordens dos militares e criou condições para que as famílias pudessem pelo menos identificar os seus mortos. Quando a gente imagina que uma ditadura militar tem permissão para matar quem quisesse, é que a gente admira ainda mais pessoas como ele que arriscaram a vida pra tentar dar um pouco mais de dignidade para aquelas pessoas que foram executadas por motivos banais sob a anuência do Estado.
O traço de Roca é cartunesco e com detalhes que emocionam mas que não geram um mal estar na leitura, já que a narrativa por si é bem dolorosa. Os autores souberam lidar com elementos dos quadrinhos que possibilitaram mostrar os acontecimentos de maneira que não ficasse tedioso e sem ser apelativo. Essa é uma leitura que, além de interessante, desperta sentimentos de tristeza e de indignação a respeito da crueldade humana que se justifica por uma busca por poder a partir de uma ideologia que acaba desumanizando pessoas para que o governo ditatorial se sinta a vontade de executar aqueles "endemoniados", "ratos", "inimigos da família" sem que isso lhe proporcione algum sentimento de culpa nem em quem representa o governo e nem na população que o normaliza.
O Abismo do Esquecimento é um excelente quadrinho adulto que traz detalhes de um terrível momento que ocorreu na Espanha em 1940 mas que tem similaridades com o Brasil dos anos 1960 e 1970. Essa obra é uma leitura que desperta indignação e revolta mas também traz esperança na humanidade ao conhecer detalhes das pessoas que não acataram ordens absurdas de um governo que matou seus próprios cidadãos por motivos banais. Uma obra cujos acontecimentos contribuem para relembrar o horror de uma ditadura para que as pessoas da atualidade evitem voltar a trafegar novamente o caminho que levou àquilo.
Ficha técnica:
Título Original: El abismo del olvido
Editora original: Astiberri
Roteiro: Paco Roca e Rodrigo Terrasa
Arte: Paco Roca
Tradução: Jana Bianchi
Formato: 24,7 x 17,9 cm
Estrutura: 296 páginas coloridas, papel
offset 120 g
Acabamento: capa dura
Peso: 850 g (aproximado)
Lombada: 2,7 cm
Área de interesse: drama, cotidiano,
família, não ficção, jornalismo Público:
adulto
Preço: R$ 165,00 (estimado)
Leia também da Editora Devir:
Acasos do Destino - a memória da participação espanhola na Segunda Guerra
Rugas - a graphic novel que reflete sobre o envelhecimento
A Casa - a hq saudosista de Paco Roca
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