A produção de quadrinhos nacionais NÃO precisa ser salva!

 


Recentemente vi um vídeo que gerou uma polêmica considerável. Um sujeito que eu nunca havia visto afirmou ser o escolhido para salvar o quadrinho nacional. Como eu sei que esse tipo de apresentação messiânica foi feita com a intenção de gerar polêmica e com isso atingir alcance maior, não irei colocar o link do vídeo em questão mas quero dar o meu ponto de vista sobre o assunto: os quadrinhos brasileiros precisam ser salvos? Entre os argumentos utilizados há dois pontos elencados: a produção e o mercado. Eu afirmo que com relação a produção, o Brasil vai muito bem obrigado e só acha que merece salvação quem não a conhece. 

É preciso partir do ponto de quem escreve esse texto. Eu não me apresento como especialista e muito menos como pesquisador, eu nunca escrevi, desenhei e nem colori. Eu sou apenas um leitor e um curioso sobre assuntos relacionados a quadrinhos. Aliás de todos os anos que eu acompanho a nona arte, admito que li pouco em comparação a quem realmente é um especialista de alguma forma. 

Eu afirmo que a produção de quadrinhos nacional não precisa ser salva porque já há algumas décadas possui o reconhecimento de grandes empresas estadunidenses de super-heróis, um número considerável de desenhistas e coloristas são disputados por Marvel, DC e outras e entregam trabalhos de qualidade indiscutível. Inclusive há autores que são pouco conhecidos no Brasil em comparação ao seu reconhecimento do mercado europeu. Leno Carvalho é um desenhista piauiense que foi ao Rio de Janeiro apenas pra nascer, há anos ele vive do que ele faz pra Europa, esse material não é publicado no Brasil porque material europeu é bem complicado trazer pra cá pelo valor do Euro, da quantidade de material produzido por ano e por fatores específicos do mercado brasileiro que irei comentar depois. O fato é que Leno está envolvido num trabalho após o outro e você pode acompanhá-lo na sua página do Instagram . 

Contudo até o momento eu não mencionei sobre a produção de quadrinho brasileiro e mencionei apenas sobre brasileiros desenhando quadrinhos gringo. Hoje com relação ao reconhecimento internacional, há dois nomes que já acumulam uma boa premiação fora: Marcelo D'Salete com Angola Janga e Marcelo Quintanilha com Escuta, Formosa Márcia (vou citar apenas uma obra senão o texto fica insuportável ). Os Marcelos com toque de midas têm uma produção invejável fruto de muito talento. Um outro nome que eu gosto muito é o do André Diniz (que dentre tantas obras eu cito A Revolta da Vacina)  que atualmente vive em Portugal e com frequência apresenta ótimas obras. 

Eu particularmente não gosto da ideia de ter um reconhecimento gringo para que a obra seja qualificada como ótima obra. Por isso, a gente pode comentar sobre os talentos reconhecidos no Brasil que possuem uma excelente produção e algumas delas já foram premiadas com o Prêmio Jabuti (que na minha opinião é a melhor premiação nacional): Gidalti Júnior com Castanha do Pará, Rafael Calça e Jeferson Costa com Jeremias Pele, Wagner William com Silvestre, André Freitas, Omar Vinole, Marcelo Saravá e Dayvison Manes com Meta. Isso é só a entrada para quem quer conhecer os artistas brasileiros. Eu cito aqui apenas o Prêmio Jabuti porque não é um prêmio baseado na popularidade mas que passa por jurados, o que dá mais credibilidade a premiação. 

Um outro fator apontado como sendo um problema para o material nacional são as campanhas de financiamento coletivo. Confinada foi uma campanha que furou a bolha e conseguiu mais de R$ 600 mil por atingir pessoas que não costumam ler quadrinhos, Boy Dodói atingiu um valor interessante de mais de R$ 120 mil. Arlindo ultrapassou os R$ 380 mil reais e no momento em que eu escrevo esse texto, a campanha de "O Apocalipse da Capivara" já ultrapassou R$ 450 mil de arrecadação. Há um bom número de artistas que conseguem financiamento e produzem o seu material de forma independente e anualmente estão na Comic Con vendendo bem. 

Agora é bem verdade que plataforma como Catarse caiu no gosto popular e chove de campanhas para inúmeros fins e com material de qualidade variada, assim é natural que aumente também o número de campanhas que não conseguem financiamento mínimo. Soma-se a isso Editora que utilizam a plataforma como queima de estoque e outras que não entregam o que se propuseram, fazendo com que algumas pessoas não confiem no serviço. Hoje se você olhar as campanhas de financiamento disponíveis você terá que rolar várias páginas e por lá você encontrará campanhas tão diversas na categoria "quadrinhos" que algumas não tem a ver com a produção de quadrinhos, como exemplo eu cito a campanha para aquisição do omnibus do Hulk para que o pai possa ler para seu filho (campanha que não se encontra mais na plataforma). A situação que apontei faz com que disperse o público ou afaste aquelas pessoas que tiveram as suas expectativas frustradas fazendo com que fique mais difícil atingir a meta de todos os projetos. 

O proprietário da Editora Veneta fez uma fala que vai ao encontro das minhas ideias num encontro com editores promovida pela Comic Boom e transmitida pelo canal Universo Hq: "O mercado brasileiro está aquém da qualidade dos quadrinhistas brasileiro" (Rogério de Campos)

O mercado (ou cena) de quadrinhos no Brasil sofre o mesmo que o mercado de livros com o agravante de atingir um publico muito menor. O Brasil é um país continental que apenas 16% da sua população consome livros . Isso não é um problema tipicamente nacional, em todo o mundo ocorre uma redução na leitura de livros físicos e num país que não nutre um hábito de leitura, essa situação fica acentuada. 

Além disso, o brasileiro possui um problema com auto-estima que o impede de identificar boas referências entre seus artistas ou acaba sendo excessivamente rigoroso na crítica do que é produzido aqui. Por isso, consumimos poucos filmes e séries nacionais (mesmo aquelas elogiadas fora do país), parte da elite simplesmente não escuta música nacional e a referência de autores literários está além das nossas fronteiras (até quando uma tik toker gringa grava vídeo dizendo que tem autor bom por aqui). Isso reflete no consumo de quadrinhos com um limitado número de pessoas se dispondo a ler quadrinho nacional e um número ainda menor de influenciadores comentando sobre o que leu publicamente. 

Eu vejo que o Brasil possui um potencial de divulgar a nona arte se um número maior de educadores levasse os quadrinhos para a escola. É possível também utilizar espaços de discussão literárias para promover o diálogo entre a narrativa em quadrinhos e as mais diversas artes como artes plástica, poesia, literatura, cinema (tanto na ficção quanto com documentários). É possível também eliciar um debate a partir de uma história, puxando uma discussão sobre situações sociais que vem gerado tanto debate. Isso poderia mostrar a um público maior que quadrinhos são utilizados para gerar discussões assim como o cinema, a literatura e a música. É preciso continuar combatendo essa ideia minimalista que ainda se prepondera no imaginário público de que quadrinhos ou são feito pra crianças ou são apenas super-heróis. 

Um outro aspecto dessa situação do mercado foi discutido no debate com editores (que eu já linkei nesse texto). Quando a Amazon chega ao Brasil, era o início da intensificação da produção de quadrinhos para livrarias e estas já davam sinais de problemas na sua relação com as Editoras com relação a demora do pagamento. A plataforma estadunidense termina por enterrar essa situação com descontos agressivos e frete grátis, levando a falência das maiores redes de livros do país. O público consumidor migrou para comprar na plataforma e ignorou e até incentivou que as edições de quadrinhos viessem cada vez mais luxuosas. Poucas pessoas reclamavam do preço de capa por confiar que iriam comprar aquele produto com um desconto acima de 40%. Isso fez com que a Amazon ficasse responsável por adquirir acima de 40% da tiragem da maioria das Editoras e exigir desconto que em alguns momentos eram superiores aos habituais 55% (desconto exclusivo para vender pra Amazon). Essa situação também foi mencionada no encontro com editores. 

Atualmente o segundo cliente de qualquer Editora não chega a representar 10% do faturamento. Com a Amazondependência estabelecida, essa empresa vem comprado menos quadrinhos e exigindo mais das Editoras, seja um percentual de desconto maior para algumas compras futuras, seja cobrando pra um atendimento com pessoas (a plataforma faz pedidos atualmente com auxílio de robôs que indicam a demanda). A exigência crescente por quadrinhos luxuosos que finalizam em poucas edições fez com que inevitavelmente aparecesse material de valores exorbitantes, o que é aceitável para um publico acima dos 35 anos que está no auge da sua carreira profissional, assim gastar acima de 500 reais por mês, não onera o orçamento, porém uma boa parte de quem não está (ou saiu) dessa situação, a opção é abandonar a leitura de quadrinhos. Isso faz com que um público consumidor que já era pequeno fique ainda menor! É claro que pode ficar pior! Nos últimos 10 anos a gente viu o valor do dólar quase duplicar e isso aumentam os custos de direitos autorais e demais detalhes na produção que estão atreladas ao valor dessa moeda. Soma-se a isso, o constante aumento do valor do papel que hoje além de livros disputa espaço com embalagens para os mais diversos produtos que são vendidos por plataformas digitais. 

Eu leio quadrinhos desde os anos 80 e nunca tive dinheiro disponível pra comprar muito por mês. Por isso, durante essas décadas, eu ampliei pouco minha compra mensal. Eu continuo gostando dessa mídia e continuo conhecendo pouca gente que também gosta. Em resumo em termo de aquisição pessoal e mercado tudo continua na mesma na minha vida, porém no que se refere a ter contado com produção nacional, aí eu venho descobrindo artistas maravilhosos que estão presentes na minha lista de melhores do ano sempre (e mesmo com o meu pouco consumo!). Os leitores de quadrinhos com uma ótima renda não têm do que reclamar, possuem acesso ao melhor do quadrinho de vários continentes (o Brasil ainda faz questão de ignorar a África), com edições que são verdadeiros bibelôs. A queda nas vendas é um problema pras Editoras médias e isso precisa gerar discussões para soluções que levem em consideração políticas públicas que ampliem a venda, o investimento na produção e na divulgação dos quadrinhos, o que não dá é pra cair no golpe de um pretenso salvador, já que ninguém sozinho é capaz de abarcar a complexidade dessa problemática. 

OBS: Imagem ilustrativa retirada da página de Facebook Universos NOS Quadrinhos Brasileiros

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