Homossexualidade durante décadas apareceu nos quadrinhos através do humor com personagens que tinham na sua sexualidade o motivo de piada para alegrar os leitores, a opção a isso era o completo apagamento dessa temática. Felizmente o século XXI fez com que fosse popularizado quadrinhos com personagens dos mais diversos gêneros de outras maneiras e dentre elas com o respeito merecido. Assim o brasiliense Mário César faz uma trilogia que pega uma vida inteira de um personagem, inciando na infância, indo para a adolescência até a idade adulta. Esse quadrinho foi publicado pela primeira vez em junho de 2018 e os seus três números estão disponíveis na plataforma Social Comics.
Acácio do Nascimento foi uma criança que sempre se encantou por bonecas, usar um cabelo longo e aprender a cozinhar. Isso ocorria em 1965 e ainda por cima o seu pai era um militar, rígido defensor do tradicionalismo cristão. Nessa época a homossexualidade era vista como transtorno mental ou desvio de caráter. Por isso os hospitais psiquiátricos recebiam homossexuais para tratamento ou internação até que fossem "curados".
É essa esperança de "cura" que os pais de Acácio, por sugestão de um padre, resolvem fazer terapia de mudança de comportamento. Como só em 1990 que a Organização Mundial de Saúde afirmou que homossexualidade não é doença, a ciência até então buscava métodos pra reverter esse comportamento "disfuncional". Assim Acácio foi submetido a violência, indução ao vômito e diversas outras punições sem fazer a mínima ideia do que ele estava fazendo de tão errado para merecer aquilo.
O que Acácio acabou tendo como companhia contante foi um intenso sentimento de culpa por seu desejo ser considerado errado. Com o tempo, a punição dos pais eram insuficientes, ele mesmo passou a se punir e a forçar inutilmente uma vida hetero-normativa. Nesses momentos, a leitura fica mais difícil por a gente perceber a tortura que é a vida de Acácio. Na adolescência, os momentos em que o seu semblante demonstrava felicidade era quando ele estava se permitindo experimentar o seu desejo com outros garotos ou dentro das suas fantasias sexuais imaginárias.
Mário César tem um traço simples cuja estética lembra um traço clássico dos anos 60 mas com muita expressividade. Quando a narrativa é dramática assim, eu até prefiro que o traço não seja muito detalhado para que a leitura não passe a ser desagradável. Um detalhe interessante na arte é que o quadrinho é colorido com preto, branco, rosa e azul. A sociedade heterossexual estabeleceu que essas duas últimas cores servem para distinguir os dois únicos sexos que ela impôs que deveria existir. Assim o autor colore as roupas dos personagens de azul e rosa e com isso acaba identificando os diversos personagens gays que estão por ali discretamente, colorindo os gays com róseo e as lésbicas com azul. Um outro detalhe é que mesmo nos momentos que Acácio passa a comportar-se como heterossexual, uns detalhes róseos passam a aparecer na sua roupa quando o seu desejo homossexual está ali discretamente.
Acácio é submetido a punição física para inibir o seu comportamento. Contudo ele também passa por terapias que na época eram utilizadas por psicólogos, ainda que tempos depois a Psicologia compreendeu o dano terrível que as mesmas causam. Através de terapia comportamental simples a família de Acácio tentou utilizar fichas pra premiar o comportamento esperado e ignorar aquele que deveria mudar. Ele foi induzido a vomitar como quem abusa do álcool quando ele não conseguia controlar o seu desejo. Por fim, um tratamento hormonal que se baseava na crença de que a personalidade de um indivíduo se limitava a uma quantidade de hormônio presente na seu sangue.
A tal "cura" nunca foi bem sucedida em Acácio porque a expressão sexual é muito mais complexa do que um comportamento observado em ratos ou um mero dispositivo fisiológico. A nossa sexualidade vem do desejo e a sua origem é muito mais profunda. É até possível que uma pessoa decidir viver controlando os seus impulsos e se impondo a gostar de pessoas com um determinado gênero. Porém o seu desejo ainda assim permanece. Acreditem! Se fossem tão simples mudar a sexualidade de alguém como se pensa ou se criança e adolescentes fossem tão vulneráveis a influência de outros, só haveria heterossexuais no mundo! As crianças são induzidas desde o nascimento a ter um comportamento de acordo com que a sociedade determinou ser adequado àquele gênero fenótipico. Por isso, grande parte das pessoas não hetero passam um bom tempo num esforço para se adequar até que elas mesmas percebem que não é possível mudar a pessoa que elas são. Eu sou um homem heterossexual não porque um dia eu escolhi assim ou porque eu brinquei de carrinho com meus amigos. Eu apenas sinto desejo por mulheres porque isso faz parte da pessoa que eu sou, mudar isso para que eu sinta desejo por homens seria penoso e inútil.
Ainda que o Conselho Federal de Psicologia afirme ser proibido terapia de reversão de sexualidade (até porque homossexualidade não é doença), é possível encontrar profissionais anti-éticos que vendam essa mentira a pessoas desinformadas ou mesmo que demonstre uma aversão ao saber que o seu paciente não é heterossexual. Por isso, a importância de fazer parte de grupos de homossexuais que possam indicar profissionais com que se sentiram a vontade. Se por acaso você não fizer parte de grupos e precisar de um acolhimento profissional sobre a sua vivência, não desista caso você não encontre um profissional não ético de início. Há outros profissionais dispostos a aceitar você como você é e ajudá-lo a refletir meios em que você possa minimizar o sofrimento de estar numa sociedade preconceituosa.
A trilogia Bendita Cura é um excelente quadrinho. A representação do drama vivido pelo protagonista é intenso e necessário para passar o tamanho do sofrimento que é não permitir ser quem é, o autor também explora o quanto as normas sociais trazem problemas até dentro do casamento hetero. Ainda que seja a história de um protagonista homossexual, é uma obra indicada aos heterossexuais que estão longe de saber como é ter uma vida sem a aceitação da sociedade. Vale ressaltar que nem tudo é sofrimento, há mensagens de força e esperança na obra que traz um conforto no coração.
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