O selo Narrativas Periféricas tem a intenção de lapidar e publicar alguns talentos da periferia paulista. Esse quadrinho é fruto dessa iniciativa e traz uma história de crianças que infelizmente é bem mais frequente do que deveria. Isso porque esse quadrinho é carregado de muitas verdades incômodas aos olhos de quem está em alguma condição de privilégio. Em junho de 2020 a Editora Mino publicou essa obra que ganhou uma reimpressão em 2022.
Uma parte significativa da população brasileira acredita no modelo de família constituído por pai, mãe e filhos e ignoram todos as demais formações familiares. Porém é muito frequente encontrarmos modelos de família como o de Ariel, o protagonista dessa história. O pai biológico dele, ninguém sabe quem é, provavelmente não suportou a responsabilidade e sumiu. O garoto vive com uma mãe que, na carência de ter um homem ao seu lado, acaba se apaixonando por Tonhão, por mais porquera que ele seja. Tonhão quer ter uma mulher pra maltratar e se satisfazer mas não quer criar "filho dos outros" (como se o garoto não fosse filho da mulher que ele explora e ponto final). Assim, Joana, a mãe do garoto, o deixa com uma vizinha, assim como quem abandona uma camisa que enlarqueceu. Eu já vi tantas histórias como essa na vida real que já perdi a conta. O pior é que a mesma sociedade que normaliza isso, não suporta a violência fruto da desestruturação social que obriga crianças a sobreviverem como podem. A sociedade exige que todas as crianças largadas por pai e mãe traga consigo o respeito de valores que nunca estiveram presentes na vida dela e pra piorar, esperam que nenhuma criança seja imbuída de emoção de revolta por ser colocada nessa situação.
Foi assim que o garoto conheceu outros garotos em situações parecidas que procuraram se ajudar para sobreviver a desafios que crianças não deveriam ter que vivenciar. Em meio as violências cotidianas, os garotos ainda encontram meio para se divertir e satisfazer as suas necessidades infantis.
O roteiro de Gabú Brito é intenso e verdadeiro e evita quaisquer amenidades. A história é violenta mas ainda assim transmite esperança em encontrar nos pares o apoio necessário. O traço do autor transmite força por focar na essência da imagem. Isso deixa a sua arte com muita personalidade e gosto dos recursos narrativos diversos com que ele modifica a sua arte com intenções narrativas para dar destaques de maneiras diferentes para aquilo que ele quer representar. O que aparenta ser uma arte inexperiente na verdade demonstra um estilo com personalidade que utiliza de borrões e simplicidade além de usar o preto e branco também como elemento narrativo. Por isso o traço vai ao encontro com a crueza da proposta do roteiro demostrando estarem alinhados com a proposta do artista. Vale ressaltar a maneira que ele compara as crianças com os pássaros dando sentido a capa.
Crianças Selvagens é excelente pela honestidade e força do roteiro. Por isso é um quadrinho adulto não indicado para pessoas que estão numa situação de grande sensibilidade em narrativas tão reais. Os desenhos de Gabú acompanham a qualidade do roteiro e demonstra que o autor sabe com segurança a mensagem que quer passar e os meios artísticos que vai utilizar para isso.
Ficha técnica:
Publicado em: junho de 2020
Formato: (20 x 28 cm)
Preto e branco/Lombada quadrada
Preço de capa: R$ 35,00
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