Jeremias - Alma

 


Jeremias sempre quis ser escritor. As suas histórias agradam familiares e amigos mas parece que havia algo faltando. Quando Franjinha vai pra Itália para visitar os seus familiares é que ele se dá conta que mal sabe sobre a sua própria origem, a sua própria história. Esse é o segundo quadrinho protagonizado pelo personagem publicado no selo Graphic MSP voltado para leitores adultos. A Editora Panini lançou o álbum em dezembro de 2020. 

Ainda que seja um quadrinho que contenha elemento de metalinguagem (uma história sobre criar história),  esse é uma obra carregada de riquezas na sua profundidade. A dificuldade de Jeremias em encontrar as suas referências familiares é estendida pela maioria das pessoas do Brasil. A herança familiar que nosso povo conhece vem da Europa, ainda que praticamente toda a população tenha uma origem relacionada a alguém que foi trazido da África. Para as pessoas escravizadas existem raros registros de nome da família original e pouco se sabe de qual região do continente essas pessoas foram retiradas. 

O que eu sei da minha origem enquanto pessoa negra encontrei no finado Orkut. A família Resende possui membros que vieram de Portugal (na verdade nem sei sobre a veracidade dessas informações). Os meus familiares antes dos meus avós vieram do Ceará mas eles não souberam dizer exatamente de onde. 

E o que isso tem a ver com criação de histórias já que qualquer um com criatividade pode criar situações variadas? Os escritores colocam nas suas histórias algo da própria identidade, a sua forma de ver o mundo, os seus preceitos morais, os seus incômodos. Por isso quanto mais a gente conhece a nós mesmos, maior é a possibilidade de utilizar narrativas que apenas nós podemos contar porque poucas pessoas tiveram experiências similares a nossa. É sabendo disso que eu insisto tanto na busca por quadrinhos africanos. Eu sempre fui leitor de quadrinhos estadunidense e hoje sinto que há um lado da minha história que é completamente desconhecida pra mim e no contato com a diversidade de culturas vindas da África, eu consigo tanto encontrar maneiras diferentes de ver o mundo quanto também encontrar aspectos similares a minha vida. 

Ainda que em Alma, o racismo não seja o tema principal como foi em Pele, é inevitável que ele esteja ali, não só pela violência de toda uma população não ter informações sobre os seus ancestrais como na violência em que o protagonista sentiu mais pessoalmente como um personagem artista que utilizou de Black Face para lhe diminuir. O Black Face é quando uma pessoa branca utiliza a negritude como indumentária para dali fazer humor. Como a consciência da minha própria negritude é de uma certa forma recente, eu lembro de não sentir grandes incômodos ao me deparar com situações de Black Face por aí. Porém nas páginas dessa obra, eu pude sentir o mal estar sentido pelo protagonista e lembrar do quanto isso é incômodo como recurso humorístico. Além do aspecto negativo do racismo, eu destaco um detalhe que me chamou muito a atenção:  logo de início aparece uma aranha inspirada na origem do Homem-Aranha, ao final com um Jeremias mais consciente da sua identidade essa mesma aranha aparece já com um outro significado. 

Os desenhos de Jefferson Costa possuem aquela beleza que não cansa com o seu estilo com muito movimento que lembra as animações. Todavia ele consegue sim se superar nessa edição! Há um momento em que ele ilustra partes de contos e muda tanto as cores quanto o seu estilo, com uma arte detalhada, apresentando ao leitor algo lindo de se ver.  

Quando a gente lê os extras, ficamos sabendo diversas referências que eles utilizaram nos quadrinhos seja em detalhes escondidos no fundo da página ou em primeiro plano. Os autores acabam respondendo uma pergunta enfática de Jeremias: "Gente negra já fez alguma coisa importante?" Sim Jeremias, várias fizeram e fazem coisas importantes nas mais diversas áreas, pena que elas costumam ser invisibilizadas. Se você quer uma fonte interessante sobre isso, escute o podcast História Preta ( clique aqui ). 

Jeremias Alma é um excelente quadrinho que toca no tema do desconhecimento das raízes do povo brasileiro, país em que o racismo invisibilizou a história de uma população que foi trazida da África. Um quadrinho excelente em roteiro e que possui um traço que consegue se superar na sua qualidade em um determinado momento mesmo ele já sendo muito bom. Uma obra que emociona e que evita repetir os elementos do álbum anterior que também foi um sucesso. Eu recomendo esse quadrinho para qualquer leitor e mais uma vez a dupla criativa proporciona uma reflexão aprofundada sobre negritude, é por isso que eu desejo que essa não seja a última história do Jeremias para o selo. 

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Ficha técnica: 

Formato: 19 X 27,5cm
Tipo de Papel: couché brilho 150g

  • Autor(es): Jefferson CostaRafael Calça
  • Número de páginas: 96
  • Lombada/Encadernação: QUADRADA
  • Tipo de capa: Cartão ou Capa dura
  • Data de Lançamento: 01/12/2020

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