Os quadrinhos africanos estão nas mãos certas?

 


No dia 6 de agosto de 2020 eu perguntei aqui no blog por que não havia quadrinhos produzidos em África publicados no Brasil. Pouco mais de um ano e meio passou e temos cinco publicações pela Editora Skript, e as Editoras Literáfrica e Social Comics anunciaram que publicarão também. Como o assunto é algo que me fascina, eu continuo fazendo algumas reflexões. Os quadrinhos africanos estão recebendo os cuidados merecidos? Os leitores que seriam o público alvo dessa produção sabem da sua existência e qualidade? Como esse material está sendo divulgado? 

No ano de 2021 a Editora Skript publicou quatro quadrinhos de diferentes países do Continente: Ligeiro Amargor (Costa do Marfim), O Pesadelo de Obi (Guiné Equatorial), O Chamado de Mpoe (Camarões) e Djeliya (Senegal) e está em produção África Fantástica (África do Sul). Esses quadrinhos chegaram ao Brasil com a curadoria do pesquisador Márcio Rodrigues que acabou chamando a atenção pelo seu curso de Quadrinhos Africanos transmitido pelo Youtube (conheça o canal aqui).  Já a Editora Skript é formada por três pessoas brancas do sul do país que tem no seu catálogo material que trata entre outras coisas de diversidades. 

Eu faço essa introdução para inserir a primeira indagação. Os quadrinhos africanos estão sendo editados pelas pessoas certas no Brasil? O Brasil foi o país da América onde a escravidão mais perdurou e como legado deixou o racismo nas suas mais diversas formas e intensidades. Por isso, qualquer produção vinda do continente africano precisa ter um cuidado na sua produção porque as armadilhas racistas são muito sutis.

 É comum brasileiros subestimarem toda e qualquer produção vinda do continente por ter no seu imaginário que só se encontra miséria nos seus mais de trinta milhões de quilômetros quadrados. Recentemente eu vi um comentário de um editor usar o termo "bem iniciante" ao referir-se aos desenhos de Ramón Ebalé em O Pesadelo de Obi, além de quadrinhista Ramón tem exposições em artes plásticas e trabalha para o cinema, um histórico desse certamente não é de iniciante. Isso veio de um jornalista que costuma pesquisar antes de escrever mas que ao fazer um comentário na sua página pessoal não teve o mesmo cuidado, apenas cotentou-se em fazer uma afirmação sem conhecer. Isso vai ao encontro daquele princípio: se eu não conheço então não existe. 

Por causa desse sentimento primário de subestimar a produção vinda desse continente que é preciso que tenha alguém que conheça os quadrinhos, a história e a cultura de grande parte dos seus países. Nesse sentido a Editora Skript acertou em ter contratado como editor e tradutor o Márcio para passar ao leitor a segurança de que o material será respeitado mais como um produto de uma cultura de um povo do que um mero entretenimento passageiro. O ano de 2022 continua indefinido sobre novas publicações mas espero que editoras que pretendam trazer mais HQs africanas tenham esse cuidado com o material. 

Saindo das mãos da editora para agora irmos para as mãos do leitor. Quem está lendo os quadrinhos africanos? A quem se destina esse material? Uma grande quantidade de pessoas brancas vão se identificar tão pouco com esse material quanto com um quadrinho da Mongólia ou da Guatemala, isso porque são pessoas que não conseguem entender que, por menos melanina que possuam, parte da sua herança genética e cultural veio da África, assim como a grande maioria dos brasileiros. Por isso é mais fácil que esse material chame a atenção de pessoas que tenham interesse pelo continente ou se identifique como sendo originário de lá (isso independe da cor da pele). 

Por isso esse é um material que não é pra limitar-se a ser divulgado em canais tradicionais de quadrinhos. Você acha que um gibitube que se popularizou por defender que diversidade de personagem é "lacração" vai vender essas HQs? Os quadrinhos tem um problema atual de ter um público em constante diminuição. Porém subestima-se a possibilidade de levar o livro pra outros públicos. Por exemplo, a lei 10.639 instituiu que seja tratado de História e Cultura africana no Ensino Básico, ainda que não haja fiscalização da aplicabilidade dessa lei, há instituições de ensino dispostas a aplicá-la. Por isso a necessidade desse material estar nas mãos de professores e apresentadas aos diretores e coordenadores de escolas particulares, além de verificar os meios de aquisição de livros nos governos estaduais e municipais. O quanto dessa produção está em alguma escola? Foi estabelecido o contato com a Editora e as possíveis redes de ensino interessadas? 

Além disso, existe a possibilidade de cada quadrinho ter um plano de divulgação diferenciado. Ligeiro Amargor que fala sobre a História do chá chamaria atenção dos habituais consumidores da infusão dentro das suas redes sociais e dos seus canais, um quadrinho político teria uma variedade de canais sobre esse tema pra poder divulgar. Isso sem mencionar nos canais óbvios: os pretos influenciadores culturais que possui uma quantidade invejável de seguidores. 

Algo que eu aprendi na minha vida é que pessoas brancas não são iguais a pessoas negras na sua maneira de gostar ou de se expressar. Essa diferença não impossibilita que haja algumas vezes características em comum entre uma pessoa ou outra. Mas o fato é que se a gente olhar passar a olhar as cores de quem produz o material artístico que a gente consome, a gente vai encontrar um porcentual absurdo de pessoas brancas. Algumas pessoas já perceberam isso e se incomodaram e é para essas pessoas que os quadrinhos africanos precisam chegar e somar-se aos outros que são interessados pelas temáticas específicas de cada um desses quadrinhos. 

Eu acredito que a porta para os quadrinhos africanos está aberta e não será fechada já que as diversas manifestações artísticas do continente encontraram seu público no nosso país e transita com naturalidade, uma tendência que tende a acontecer também no mercado dos quadrinhos. Os quadrinhos africanos precisam estar nas mãos certas tanto de editores preocupados em fazer uma edição brasileira à altura quanto de leitores que buscam sair do feijão com arroz e estejam dispostos a experimentar narrativas e temáticas autênticas. 


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