Duplo Eu - o relato em quadrinhos sobre a vida com obesidade

 


As regras sociais impõem às mulheres diversos padrões sobre o seu comportamento, a forma de vestir e até sobre o próprio corpo. Isso porque as mulheres precisam ser atraentes o tempo todo e qualquer deslize levam-nas a cobranças e sofrimento. Nesse quadrinho a roteirista francesa Navie conta sobre a própria experiência de ser uma mulher obesa e que precisa estar com o ânimo lá no alto para poder suportar uma sociedade que a vê como uma pessoa doente. A Editora Nemo publicou esse quadrinho em 2019. 

Há situações da vida que por mais que pessoas de fora estudem ou conversem a respeito, não conseguirão captar exatamente a carga emotiva que só possui quem tem a vivência. É possível lutar por igualdades de condições entre homens e mulheres, contudo situações específicas nunca serão iguais. A aparência do homem nunca terá o mesmo peso pra se avaliar a sua competência quanto nas mulheres. O envelhecer para o homem passa um ar de confiança e experiência, já o envelhecer feminino passa uma sensação negativa, não é a toa que as mulheres investem tanto em estética para disfarçar a idade. Se a gente colocar isso no campo da imagem, apresentadoras, atrizes e modelos perdem trabalhos com o avançar da idade, diferente dos homens que ficam ainda por um número maior de anos. Um outro dado curiosos é que o Brasil possui 62,6% de mulheres acima do peso  e ainda assim a obesidade é vista como algo doentio ou motivo de chacota. 

Navie a roteirista e a protagonista convive a maior parte da sua vida com obesidade e aparentemente vive bem socialmente com isso. Os médicos procuram convencê-la de que possui uma doença mesmo quando nenhuma taxa aparecesse alterada nos seus exames. Porém a sua auto-estima inevitavelmente acaba sofrendo inteferencia da constante opinião externa. Por isso quando ela precisa encarar a si mesma é que o seu "outro eu" faz de tudo para atrapalhar. É ele quem debocha dela, quem oferece comida toda hora e quem procura impedi-la de fazer atividade física. É exatamente esse "outro" que ela está disposta a eliminar e vai procurar os meios para isso. 

O destaque da história é que a protagonista foge do estereótipo da gorda sofrida e tímida, vítima dos maus tratos da sociedade. Navie é uma mulher decidida, muito divertida, que possui uma vida sexual ativa e questiona a imposição estética social. Contudo a insistêcia da sociedade em algum momento vai afetá-la e somente os seus pensamentos são telespectadores do sofrimento que ela passa. Durante a leitura eu lembrei de uma aula sobre distúrbios alimentares quando a professora citava que muitas vezes eles acabam encobrindo diversos outros problemas da vida da pessoa, é interessante como a forma como a autora explora esse aspecto na obra. 

O quadrinho tem um texto leve e cheio de humor mas que sabe ser tocante nos momentos certos. A roteirista conta com o traço  da francesa Audrey Lainé que, apesar desse ser o seu primeiro trabalho em quadrinhos, já tem uma boa bagagem no estudo de arte. A simplicidade dos desenhos contrasta com a sua profunda expressividade. A gente vê isso quando a personagem se olha no espelho e vê no seu reflexo uma imagem que hora é de uma pessoa muito sensual e hora é de um monstro deformado, representando em detalhes o seu estado de espírito. A obra é toda em preto e branco mas conta com detalhes em vermelho principalmente quando representa "o outro". Vale ressaltar que esse quadrinho é escrito, desenhado e editado originalmente por mulheres e a edição brasileira contou com uma tradutora, a Renata Silveira, com a revisão de Samira Vilela e uma editora assistente a Carol Christo. 

Duplo Eu é uma excelente história autobiográfica feito com muita sensibilidade mas que não se prende a estereótipos da "gordinha sofrida". Além do talento das autoras, o fato de ela ter sido feito originalmente por mulheres (inclusive na edição) confere a obra uma verdade vivencial sobre um assunto mais frequente do que a gente imagina. Essa é uma história de vida que pode ser útil não apenas por quem tem a obesidade como um problema mas também para quem não tem, já que para quem não sofre é fácil julgar as pessoas pelos corpos que têm. É preciso ter contato com relatos de vida para entendermos que o comportamento humano vai muito além da previsibilidade de uma equação de primeiro grau. 



Ficha técnica: 

Páginas: 144 

• Formato: 17 x 24 cm 

• Acabamento: Brochura

 • Título original: Moi en double 

 • Mês/Ano de publicação: 07/2019


Leia também:

Não Era Você Que Eu Esperava - a experiência real de um pai com uma criança com deficiência

A Marcha Livro 2 - John Lewis e Martin Luther King em uma história de luta pela liberdade

A Marcha Livro 1 - um instrumento de luta não violenta pra combater o racismo

Comentários