Um Grande Acordo Nacional - documentário em quadrinhos sobre o Golpe de 16

Ainda me custa a entender como os brasileiros elegeram uma tragédia em forma de governo como o Bolsonaro, acredito que levarão algumas décadas para poder enumerar todos os pontos que levaram a isso. Eu acredito que algo que estará entre os motivos é o impeachment da presidenta Dilma que eu prefiro usar o termo Golpe de 16. O jornalista paranaense Robson Vilalba escreveu e desenhou a reportagem em quadrinhos que traz elementos importantes desde os protestos de junho de 2013. Em 2014, ele recebeu o Prêmio Vladimir Herzog de Jornalismo e Direitos Humanos. O livro foi publicado pela editora Elefante em junho de 2021.

Robson Vilalba decidiu escrever uma reportagem em quadrinhos trazendo elementos sobre o impeachment e, para isso, ele tentou entrevistar a presidenta Dilma no dia do seu afastamento. Além de mostrar como ele conseguiu se aproximar dela, ele aproveita para enumerar os acontecimentos mais importantes que contribuíram para esse acontecimento.

Robson Vilalba tem uma invejável habilidade com a escrita, além do seu poder de síntese, o seu texto é claro e atraente de ler. A obra não despertou em mim apenas lembranças da época mas resgatou vários dos sentimentos desagradáveis que cada situação citada gerou. Engana-se quem pensa que arte existe pra ser apreciada, uma boa manifestação artística lhe permite o contato com emoções, sejam elas quais forem, e isso o autor conseguiu fazer muito bem. Acho importante que a obra esclarece a falácia de que há "jornalismo imparcial". Tudo o que é visto é um ponto de vista a partir de um determinado local e quem vê são pessoas que têm toda uma bagagem cultural, científica e história de vida que irão interferir na sua percepção. Em vez de ficar reclamando por causa disso, seria bem mais útil o leitor buscar fontes diversas e formar a sua própria opinião sobre o assunto.

Em mim, por exemplo, a leitura me fez lembrar de tanta coisa que se eu fosse dizer tudo eu não iria apenas escrever um texto mas um blog inteiro apenas sobre isso. A compreensão popular foi induzida a acreditar que toda a corrupção que existe no país foi feita do PT para o PT e que a situação financeira que piorou em 2015 foi porque o partido roubou o dinheiro de todos os lugares possíveis para a manutenção do seu projeto de poder. Entretanto a investigação da Lava Jato mostrou um esquema de corrupção que existia desde a ditadura militar através da relação entre empreiteiras privadas e as obras da Petrobrás que vinha com lucros crescentes e precisava de cada vez mais obras pra explorar e refinar a grande quantidade de petróleo encontrada no país. O esquema descoberto pela Lava Jato mostrou que o diretor da estatal Paulo Roberto Costa, que foi indicado pelo Partido Progressista, era quem estruturava o esquema que beneficiou a campanha eleitoral de diversos partidos. Uma podridão antiga que ninguém teve a iniciativa de barrar, pelo contrário, apenas cresceu ao passar dos anos. As empreiteiras privadas sobrevivem e se desenvolvem há décadas com essa prática já que quem não entra na corrupção política nem sequer participa de licitação de obras. Sobre isso eu indico o livro da Malú Gaspar "A Organização" que detalha tudo isso que eu escrevi a partir de como ocorreu o crescimento da Odebrecht (compre aqui). O fato é que com um bode expiatório, ficava fácil entender "a Grande Verdade": era só tirar o PT do poder. Temer assumiu e a Lava Jato foi tendo cada vez menos recursos até ser extinta de vez no Governo Bolsonaro que colocou o presidente do Partido Progressista (com várias investigações nas costas) como Ministro da Casa Civil, pode?! Fora que a corrupção brasileira é tão radioativa que contaminou os próprios investigadores e juízes que passaram a ver ali uma oportunidade de abocanhar o poder político para si.

O traço do quadrinho é excelente pelo autor utilizar o nanquim de formas variadas. Mas o que mais me toca é a tensão no olhar dos personagens denunciados e a leveza de quem está ali apenas se aproveitando do circo. Os detalhismo dos desenhos nos provocam a lembrança das imagens da época e com isso a nossa própria imagem sobre onde a gente estava e o que sentia.

A HQ me permitiu repensar muitas coisas e o sentimento de indignação que me acompanhou me fez perceber o quanto seria inevitável a eleição do Bolsonaro. A decepção de um partido de esquerda que entendeu que enfiar o pé nessa lama era o único meio para a governabilidade. Uma crise financeira que iniciou com o mercado externo em 2013 e que fez com que a economia mundial encolhesse e o país não tomou nenhuma medida para se ajustar. Após a crise foi tomar corpo, as medidas tomadas durante o governo Dilma ampliaram o sacrifício das pessoas com pouca renda e não mexeram em nada na categoria mais privilegiada. O que apenas gerou insatisfação àquela população que estava disposta a apoia-la. Depois de Dilma, Temer e Bolsonaro ampliaram ainda mais a conta paga pela população empobrecida enquanto bilionarios, altos servidores do judiciário e do exército foram favorecidos. Em 2016, Dilma encontrava-se demonizada pela direita e com apoio limitado da esquerda, somado a inúmeros partidos que temiam o avanço das investigações, por isso nada poderia ser feito. A população desacreditada na política só poderia abraçar aquele que era a personificação de tudo que fosse antidemocrático, por pior que ele fosse. Pois bem, o preço que pagamos por isso hoje foi pelo menos 600 mil vidas, Amazonia e Pantanal destruídos propositalmente, uma economia tão capenga que qualquer outro país é mais atraente, uma democracia frágil e fazendo o possível pra não virar uma ditadura militar e um povo que sobrevive mesmo com tão pouca esperança.

Um Grande Acordo Nacional é um excelente documento para entender a realidade atual ao explicitar os elementos que contribuíram para isso desde 2013. Com um autor que tem uma habilidade admirável de contação de história, pesquisa e síntese, além de um traço que traz personagens expressivos. Certamente esse é um dos livros de referência para entender como o Brasil entrou na tragédia que foi a eleição de 2018.

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