Os anos 80 premiaram os quadrinhos com vários clássicos dentre eles destacam-se com facilidade Watchmen e Batman Cavaleiro das Trevas. Os artistas dessas duas obras se juntaram no início dos anos 90 e publicaram esse fantástico gibi escrito por Frank Miller, roteirista do Cavaleiro das Trevas e desenhado por Dave Gibbons, que ilustrou Watchmen. A obra originalmente teve vários arcos e a Editora Devir em março de 2021 resolveu juntar todo o material e publicar numa lapada só de maneira inédita. O Brasil até então já teve publicado o primeiro arco apenas em 2006 pela Editora Mythos. Para melhor compreensão da HQ, resolvi resenhar os arcos em separado contudo é preciso salientar que além dele há várias outras histórias curtas e muitos extras.
Grito de Liberdade
Essa é uma história introdutória que mostra desde o nascimento de Martha Washington; o início da sua vida escolar e como ali ela já demonstrava uma habilidade incomum de lidar com a tecnologia; a sua vida no Jardim, local controlado pelo Estado onde as pessoas mais pobres moravam e de onde elas não poderiam sair; até a entrada no grupo Pax, onde realizava missões ao redor do mundo. Esse é um grupo militar pelo qual os EUA poderia exercer sua auto atribuída autoridade de ser a polícia do mundo. A sua primeira missão foi vir ao Brasil para impedir a destruição da Floresta Amazônica pelos produtores de alimentos que pretendiam transformar o ecossistema num celeiro.
Esse é um mundo com a moral tão devastada que até os grupos de minorias passaram a fazer parte de um meio de opressão como os gays que conseguiram conquistar o seu lugar entre os neo nazistas e os índios que se organizaram em milícias.
Frank Miller não alivia nada a sua visão pessimista de futuro e o medo que dá na gente é quando parte disso está refletido na realidade, por exemplo, Martha é enviada ao Brasil com a Pax para evitar que a floresta amazônica seja destruída pela indústria de alimentos e em 2021 a agroindústria enxerga a Floresta como pasto ou potencial campo de produção de soja. Uma outra característica do autor é que os seus personagens são muito reais nos seus defeitos e ele não aposta na pureza dos grupos minoritários são gays nazistas, indígenas milicianos, feministas golpistas que se aproveitam de um país enfraquecido na sua liderança e que encontra uma dificuldade crescente em permanecer unido. As classes dominantes permanecem com a prepotência de segregar guetos e auto denominar-se polícia do mundo. O arco volta-se muito para mostrar todo o contexto que a história acontece mas pouco explora da individualidade da protagonista: a sua personalidade, seus temores e seus planos. Ela se apresenta como uma soldado qualquer que está ali pra executar uma missão.
Martha Washington Vai à Guerra
Quando a gente pensa em guerra logo imagina países lutando entre si. Contudo o futuro imaginado pela HQ traz os EUA tendo que lutar contra uma empresa alimentícia que tem milícia a sua disposição, tanques e aeronaves. Com a escassez de alimentos, comer carne passou a ser algo proibido em alguns Estados e a Fat Boy vai fazer de tudo para ampliar os seus lucros. Pra piorar, o país está em frangalhos e os países que declararam independência vão se manter assim através de luta armada. Em meio a tantos conflitos, Martha precisa ainda solucionar um mistério a respeito de Fantasmas que estão sumindo com as maiores mentes do planeta.
Como o contexto já estava bem estabelecido, foi passível dar uma atenção maior a protagonista quanto a personalidade e os seus pensamentos. Porém a narrativa fica mais lenta nesse arco. Os autores abriram mão do contexto político para que a gente pudesse conhecer de forma detalhada Martha que por isso cresce bastante como personagem e cativa os leitores.
Entre as histórias curtas, Insubordinação é uma homenagem a Jack Kirby com o encontro de Martha com um personagem inspirado no Capitão América, são poucas páginas que conseguem emocionar com uma homenagem a altura dos preceitos morais de um dos grandes heróis criados por Kirby.
Salva o Mundo
O desafio que Martha Washington enfrenta nessa história vai além de conflitos entre fronteiras. A heroína agora está no espaço e vai presenciar um meteoro monstruoso chamado Brutamontes atingir Júpiter, um evento que afeta os habitantes terrestres daquele planetas que dão uma interpretação religiosa ao acontecimento. Além disso, uma inteligência artificial assumiu planos próprios de dominação e os inicia na tripulação da nave de Martha.
Nesse último arco os autores não abordam mais sobre todo o peso político e realista da obra e resolvem contar uma divertida história de ficção científica, o que deixa a leitura bem mais leve. É bem verdade que eu prefiro bem mais uma crítica social temperada como vêm no primeiro arco mas apesar disso não é uma história que incomoda. Ainda que Miller não mantenha um estilo único nas diversas edições originais da hq, ele consegue entregar boas histórias com a personagem, incluindo as pequenas histórias entre um arco e outro. Como havia uma ótima personagem que poderia ser explorada e autores com talentos incomuns, esse arco serve para explorar com mais intensidade o aspecto ficcional e consegue trazer uma história de qualidade.
Minha experiência com a leitura
O desenhista Dave Gibbons entrega um lindo traço que se mantém constante em todas as histórias. São poucos os artistas que tem a habilidade de criar naves, torres, civilizações extraterrestres com um design futurista bem próximo ao presente da época, não sendo um visual extravagante. Isso faz com que essa seja uma obra completa com qualidade de roteiro similar a qualidade dos desenhos.
Se você é daqueles leitores que faz questão de ler quadrinhos com pouco texto sinto informar que A Saga Completa de Martha Washington não foi escrita pra você. Essa é uma leitura pra ser feita sem pressa quando você tem um bom tempo disponível para ela. Em termos de contribuição para os quadrinhos, certamente o primeiro arco é o grande destaque. As demais histórias são divertidas mas não tem a mesma conexão com a realidade política e econômica da época. O futuro imaginado por Miller que compreende o início do Século XXI até o final dos anos 10, nos traz alguns sustos quando vemos que ele se aproximou do que está acontecendo. Esse lado premonitório das ficções científicas é uma das características que a tornam tão relevantes. É uma pena que ainda assim elas são ignoradas e desastres tanta vezes anunciados acabam sendo inevitáveis.
Ficha técnica:
Editora original: Dark Horse Comics
Roteiro: Frank Miller
Desenho: Dave Gibbons
Tradução: Marquito Maia
Formato: 19 x 28 cm
Estrutura: 608 páginas coloridas, papel
couche fosco 90 g
Acabamento: capa dura – soft touch
Lombada: 4,4 cm
Área de interesse: guerra, protagonismo
feminino, aventura, ficção-científica
Público: adulto
Preço: R$ 249,00
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