No século XIX, assassinatos chocaram a sociedade britânica pela forma que os corpos estavam, o que indicava uma violência descabida. Séculos se passaram e até hoje o crime encontra-se sem solução. Jack, o Estripador é o assassino que foi nomeado assim por alguns jornais na época. Esse é um mistério que gerou tanta fascinação que diversos livros foram escritos sobre o assunto. O quadrinhista Alan Moore se debruçou sobre vários deles e resolveu escrever a sua versão dos fatos. É claro que uma mente genial como a dele não iria se resumir a escrever mais uma história de detetive e, assim ele acrescenta outras temáticas.
Alan Moore inicia a história deixando claro quem é "Jack, O Estripador" mas com o nome real dessa pessoa. Um garoto que sempre foi fascinado por animais mortos, torna-se um médico reconhecido pela sociedade londrina. A vastidão dos seus conhecimentos além de habilidades para o diagnóstico de dferentes moléstias físicas e mentais até alguém que sabia identificar a causa mortis de cadáveres dissecados, o tornou famoso.
O seu reconhecimento na alta sociedade fez com que ele tivesse fácil acesso em hospitais, casa de autoridades e inclusive no palácio real. Por isso, o protagonista recebe uma missão e viaja pelas ruas para executá-la. O algoz perfeito já que a sua credibilidade como o médico o tornava invisível como suspeito.
Alan Moore além de mostrar a trajetória do assassino, aproveita para explicar ao leitor, através do seu personagem, conceitos elementares de magia. Diferente do que popularmente se imagina com feitiços e rituais, a magia segundo Moore se dá através da simbologia. Para esclarecer isso, o autor traz o exemplo da mudança de uma sociedade que antes era matriarcal e que hoje é patriarcal. O uso dos símbolos de devoção foram modificados e isso contribuiu para que isso fosse concretizado. O personagem, para provar o seu ponto de vista, mostra a influência de elementos na arquitetura que mesmo em uma sociedade cristã sofreram a influência de culturas que estiveram ali anteriormente. A magia se dá portanto numa mudança de narrativa que é repassada por gerações. Para uma pessoa cética como eu, esse ponto de vista possibilitou compreender melhor como o processo do simbólico é eficaz para entender o comportamento da sociedade.
Do Inferno também mostra o quanto uma sociedade glamourizada como a inglesa guarda segredos sujos, seja em grupos secretos como a marçonaria, seja na atuação da nobresa para esconder "possíveis erros" ou seja nos quartos dos plebeus. O livro inclusive se passa numa época em que a sociedade valorizava valores puritanos. Por isso a vivência da sexualidade era algo que devia ser muito escondido a ponto de maridos não verem as suas esposas nuas. Esse clima de excessivo pudor possibilitou que pessoas tivessem transtornos mentais, principalmente as mulheres cujo comportamento era o mais cobrado. A psicanálise surgiu nesse período quando o neurologista Freud destacou-se com o tratamento das mulheres consideradas histéricas. A palavra histeria é originária da palavra "útero", órgão em que acreditava ser a origem dos transtornos mentais. Isso possibilita entender o quanto o sexo era um tabu naquela época.
Por isso, assim como o sexo na sociedade vitoriana, Londres escondia uma realidade de disparidade social. Na mesma cidade onde vivia a nobreza, viviam pessoas em condições de miséria que muitas vezes não tinham o necessário para ter onde dormir. Alan Moore explora bem esses segredos e aponta a sua lanterna narrativa para aquilo que a cidade queria esconder.
O desenhista Eddie Campbell inicia a obra com um traço simples e sujo, porém muito expressivo. Esse estilo de traço reforça a sujeira da ambientação e dos acontecimentos. Os desenhos parecem gritar ao leitor: "Esqueça aquela Londres bonitinha e glamorosa que você imagina e veja esses becos fétidos frequentado por essas pessoas imperfeitas que escondem o seu verdadeira caráter com os seus ternos e vestidos". Como não podia deixar de ser, os desenhos de Do Inferno não seguem um único estilo. Há momentos em que Campbell abandona a caneta e emerge na aquarela, em outros o seu traço fica mais refinado e detalhado para que possamos visualizar bem os detalhes dos prédios e igrejas das cenas. Além disso, o quadrinho é muito explícito e não poupa os leitores mais sensíveis; órgãos ganitais, relações sexuais e evisceração de corpos são mostrados com muitos detalhes com a intenção de ser uma obra muito sincera na sua crítica.
Inclusive a crítica da obra também bate na cobertura da imprensa da época. Quando o mistério possibilitou que fossem apontadas pessoas inocentes por puro preconceito. Além disso, os jornais divulgavam notícias falsas para vender mais edições e pessoas comuns viram a oportunidade de apresentarem-se através de cartas como o assassino. Em tempos de medo coletivo, pessoas procuram formas de aproveitar-se da situação seja por diversão ou por dinheiro. A obra, portanto possui várias camadas e permite tirar várias observações a seu respeito.
O livro é uma obra que precisa ser degustada com vagar. Eu recomendo que você leia apreciando os detalhes das páginas, ainda que em alguns momentos a linguagem seja rebuscada, faça um esforço e deixe a narrativa lhe levar. Alan Moore consegue colocar elementos interessantes o suficientes para prender a atenção.
A edição brasileira é da Editora Veneta que lidou muito bem com o desafio que é adaptar essa obra. Além de uma capa linda, contou com uma equipe que suou muito para finalizar uma obra tão comolexa. O tratudor Jotapê Martins além de traduzir precisou pesquisar muitos detalhes sobre as ruas de Londres e outros detalhes de época além de adaptar rimas que ocorrem em alguns momentos. A letreirista Lilian Mitsunaga além de escrever cada balão e recordatório teve que adaptar a mão várias fontes. Isso porque em alguns momentos da investigação pessoas escreviam cartas para delegacia e cada uma delas possuiam uma letra diferente, por isso, coube a letreirista imitar vários jeitos diferentes de escrita a mão para passar essa imagem para o Português.
Do Inferno é o resultado de um extenso trabalho de pesquisa que fica claro nas 52 páginas em prosa do primeiro apêndice, em que Alan Moore detalha as fontes de onde ele tirou os detalhes de cada capítulo. Quando ele insere elementos, eles muitas vezes partem de deduções fruto dessa pesquisa, em poucas situações o autor cria acontecimentos. Contudo isso não diminui em nada a genialidade do roteirista que é capaz de condensar vários livros, incluir o seu ponto de vista e deixar a narrativa com fluidez o suficiente pra gente não ficar entediado.
Do Inferno é um encadernado de Alan Moore que vai muito além de um livro sobre um serial killer. Com o foco em uma figura degenerada, o autor faz uma crítica social ferrenha em que não poupa diversos setores. A obra é fruto de uma pesquisa minuciosa e, através da habilidade narrativa do seu autor, consegue trazer uma história que prende e traz reflexões sobre pessoas em quaisquer que sejam a época em que a obra é lida.
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