Visão - Pouco Pior Que um Homem


Desde que eu comecei a ler quadrinhos nos anos 80 eu nunca havia lido uma revista do Visão, apesar de ele já fazer parte dos Vingadores bem antes disso. Em 2018, chega ao Brasil dois encadernados que conta uma história fechada do personagem. Na verdade, como se trata de uma história apenas, o título desse texto deveria ser a junção dos nomes dos encadernados. O nome correto seria: Visão Pouco Pior que um Homem e Eu Também Serei Salvo pelo Amor. Contudo iria ser um título extenso e isso é desaconselhável. 

No enredo, o Visão se muda para uma cidade pacata, ele divide a sua casa com a sua esposa Virgínia e seus filhos Vin e Viv. Isso por si só é algo bizarro. Visão é um sintozóide, uma mistura de robô com enxertos humanos. Para que um organismo como esse iria precisar de uma família? Visão foi construído pelo Ultron pra ser uma máquina perfeita e, pra isso, acabou recebendo emoções na sua programação provinda das memórias de um Vingador chamado Magnum. Assim, o andróide sente a necessidade de ser próximos aos humanos e construiu uma família para si também com as características de possuir pensamentos racionais e processar emoções.

O que era pra ser o dia a dia de uma família comum e perfeita acaba gerando estranhamento quando o Visão sai voando para o trabalho e os filhos entram planando na escola. Não tem como isso ser ignorado ou não ser visto de forma preconceituosa pelos humanos ao redor. Os filhos Vin e Viv, ao se deparar com preconceitos, ainda que eles não entendam exatamente o que é isso, começam a ter questionamentos existenciais. Isso seria o início de uma tediosa história até quando o narrador conta sobre uma violenta reviravolta, que a gente começa a ficar tenso sobre o que vai acontecer. Como um robô recém construido e superpoderoso vai reagir a uma situação violenta? Quanto de emocional ou de racional há nas suas reações? Esse acontecimento gera um terrível segredo de família, algo que poderia até ser uma "sujeira em baixo do tapete" se alguém misterioso não tivesse filmado e estivesse disposto a fazer chantagem com essa prova. 

A revista foi publicada originalmente em 12 partes em 2016 e fez parte da iniciativa Totalmente Diferente Nova Marvel, contudo não seguiu a proposta geral que era apresentar personagens clássicos de maneira diferente. Nesse gibi, o Visão foi apresentado da maneira clássica mas contou com novos personagens, a sua esposa e os seus fillhos e um cachorro robótico ou, como diz a sua caixa do correio, os Visões.


O roteitista Tom King ao mesmo tempo que entrega uma história atípica para o padrão das hqs de heróis, consegue fazer um resgate dos principais acontecimentos da existência do vingador sintozóide. A história caminha entre uma crítica social a forma sobre como as pessoas lidam com o diferente, faz uma reflexão existencial de robôs lidando com sentimento, além de deixar um mistério pelo ar e conclui com um grande quebra pau entre heróis. 

O que me chama a atenção em toda essa mistura é a estranha sensação de querer entender como uma inteligência artificial lida com as emoções. É bem verdade que isso não tem nada de inovador mas a forma como o autor trabalha esse conteúdo é que varia do piegas para o interessante. Entender o olhar de quem vê o mundo com cálculos numéricos e, ao mesmo tempo querer fazer parte da sociedade, até seria mais fácil criar mais um Pinóquio que chora querendo ser um humano, mas não é isso o que está no enredo. Os Visões são frios e, até os conflitos da adolescência são pré-programados, contudo com a evolução da história, parece que os algorítmos passam a não funcionar como deveriam e as emoções vão afetar o raciocínio lógico de tal forma que um erro vai levando a outros cada vez maiores. 

O desenhista Gabriel Hernandez Walta retrata personagens inespressivos e sem movimento que, para essa história, casa perfeitamente já que acentua a frieza dos personagens que parecem agir de acordo com uma programação. Isso acaba gerando surpresa pois cada detalhe do desenho parece ter um lugar adequado até que, ao virar de página, uma cena violenta quebra toda essa harmonia, gerando um impacto visual. Nessa hora, a gente está tão envolvido com aqueles personagens que nem sabe mais o que é circuito e o que é músculo, dá a impressão de que todos são os nossos vizinhos. Michael Walsh desenha uma parte que é todo uma recordação, assim ele simula um traço clássico para dar um ar saudosista, um efeito narrativo que acrescenta ao roteiro. 

O inusitado desse tipo de história é que ela geralmente é a busca de uma coisa em se tornar um ser. Aqui é diferente, o robô já tem o seu sonho realizado de tornar-se uma pessoa comum com uma família perfeita, a história mostra como ele perde isso e a reação da sua família a essa perda. Um humano facilmente entraria em desespero caso isso ocorresse, mas como chegar a uma intensidade de sentimentos com uma programação baseada em dados? Os humanos tem a trava da moral para se guiar e encontrar soluções, mas como transformar esse conceito em um programa? É aí em que a diferença fica evidente e o estranhamento vai vir tanto dos humanos quanto dos andróides e eu como leitor também consegui senti-lo todo o tempo. É isso que faz essa obra ir além do habitual e ser uma excelente experiência de leitura.

Visão Pouco Pior que um Homem e Eu Também Serei Salvo pelo Amor são dois encadernados que completam uma excelente história de ficção que se atreve a fugir da temática típica das histórias de herói, ao mesmo tempo consegue compilar vários momentos significativos desses anos em que o personagem esteve ao lado dos Vingadores. Para quem gosta de provar um sabor diferente em quadrinhos de herói, desguste esse prato devagar e bom apetite!


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