Júlia aventuras de uma criminóloga 1 - Os Olhos do Abismo


Júlia Kendall é um fumetti (gibi italiano) que foi publicado originalmente em 1998 e que passou a ser republicado no Brasil em 2019 desde a sua primeira edição, dessa vez com o formato italiano pela Mythos Editora. Cada edição traz uma história completa da personagem e pode ser lida independente das demais.


Júlia Kendall é uma psicóloga especialista em personalidade de criminosos, por isso o título de “criminóloga”. A história parte do ponto em que ela estava mais afastada da polícia e vive a sua vida como professora universitária. Contudo, nota-se que ela possui uma fama e reconhecimento já consolidados, já que o enredo mostra que um filme a seu respeito está sendo produzido.


Apesar da história seguir aquele velho clichê do “personagem que sabe tudo mas já cansou até que um grande acontecimento o recoloque na ativa” é preciso embarcar na narrativa para descobrir o porquê dela ser uma profissional tão considerada. Isso é possível quando um assassino em série faz entre as suas vítimas uma das alunas de Júlia que é o estímulo para que ela entre pessoalmente no caso.


O gibi prende a atenção por misturar história de detetive com psicologia, conceitos psicanalíticos são capazes de delinear o perfil do assassino e com isso é possível ir atrás dos suspeitos. Júlia é uma mulher forte que não baixa a cabeça para ninguém, seja um gigolô enorme cheio de segurança ou um delegado abusado que dá carteirada.




Apesar dessa fascinação que a história gera, é possível encontrar alguns problemas na narrativa. Ainda que o roteirista Giancarlo Berardi denuncie o racismo direto quando um dos suspeitos demonstra a sua indignação com uma amiga que fez sexo com uma pessoa preta, ele caracteriza a personagem Emily que é a empregada doméstica da Júlia como o típico de alívio cômico, da personagem ingênua que age impulsivamente. Além disso, o desenhista Luca Vannini a representa com um perfil que deforma seu rosto para criar uma certa similaridade com animais, vale ressaltar que Julia Kendall tem o rosto inspirado na atriz Audrey Hepburn e Emily na Whoopi Goldberg. Assim, basta ver a diferença como as duas são retratadas para notar algo estranho, para piorar, há uma cena em que o diretor do filme da Júlia fica indignado com a crítica de Emily e a compara de forma racista com Bob Marley e recebe aquela velha reação branca e silenciosa de Júlia. O roteiro não traz apenas momentos de racismo estrutural mas o machismo está presente também de forma discreta. Uma das vítimas, por exemplo, é uma estudante e quando um dos personagens revela que ela é uma garota de 19 anos virgem, Júlia responde “Uma solteirona”, dando a entender que é incomum ser tão jovem e virgem ou estar com 19 anos e não ter um relacionamento duradouro, algo que só faz sentido num contexto machista. Para não ficar apenas nessa situação, o enredo gera uma expectativa de que Júlia luta bem, seja em como ela é retratada no filme, seja no comentário de Emily que torce pra que ela “arrebente os bandidos”. Contudo, na hora em que ela se depara com uma luta, é um homem que a tira da enrascada, como uma boa princesa em perigo. Quando eu comecei a ver essa situação, eu queria acreditar que é uma história criada nos anos 80 ou 70, mas grande engano, isso foi publicado em 1998!


Eu preciso ressaltar que apesar desse longo parágrafo anterior apresentar situações em que os preconceitos se manifestam, isso é a menor parte da história. O que se vê na maior parte do gibi é que os desenhos de Vannini explora muito bem o preto e branco na sua arte e são imprescindíveis para a narrativa, ainda que o seu estilo sujo não seja detalhado, a sua arte insere elementos narrativos que contribuem para a história. O enredo de Berardi além de conduzir bem a história e ter um ótimo final demonstra que o autor fez uma boa pesquisa em teorias da psicologia para incrementar a sua personagem. Berardi apesar de denunciar o racismo direto na hipocrisia de um personagem não saber lidar com o seu desejo por mulheres pretas, deixa passar de forma sutil o racismo estrutural. Da mesma forma que ele cria Julia Kendall, uma protagonista que conquista o respeito de todos pela postura e profissionalismo,  ela ainda precisa de um homem para salvá-la e é uma personagem que reforça nas suas falas o machismo. Isso deixa transparecer que Giancarlo Berardi nessa obra até tem a intenção de mostrar o respeito a pluralidade mas parece que isso gera um conflito interno já que ele escorrega ao deixar transparecer os costumes de uma sociedade em que o homem heterossexual branco tem o domínio das estruturas de poder e normaliza isso. Vale ressaltar que Júlia é um sucesso na Itália e em outros países e que é publicado até hoje e que esse mesmo autor também criou Ken Parker que é um outro destaque da Editora Bonelli.


Júlia Aventuras de uma Criminóloga - Os Olhos do Abismo é uma ótima história apesar dos detalhes já mencionados. A personagem além de se apresentar como bem construída, deixa no ar algumas pontas sobre o seu passado que pode garantir grandes histórias. A narrativa é acima da média e é recomendada para quem gosta de histórias de detetive bem pé no chão.


Ficha técnica:
Publicado - outubro de 2019
Editora - Mythos
Número de páginas - 132
Formato - 16 x 21 cm/ preto e branco
Lombada quadrada/capa cartão
Preço de capa - R$ 28,90

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