Persépolis é uma auto-biografia em quadrinhos da iraniana Marjane Saltrapi que conta a sua história desde a infância, narrando os acontecimentos históricos do seu país e a vida de uma menina/jovem/mulher iraniana ao passar dos anos; a obra atualmente é publicada pela editora Companhia das Letras pelo selo Quadrinhos na Cia. A rigidez que alguns países adotam a cultura mulçumana é algo que o ocidente sempre viu com muita perplexidade mas que com o avanço da extrema direita pelo mundo, é uma realidade que tende a ser comum e que traz similaridades com o que estamos vivendo inclusive no Brasil.
O início da história acontece em 1980, quando a autora tinha apenas 10 anos. Nesse início ocorre a transição de uma monarquia persa com a derrubada do poder e em seguida a instalação de uma teocracia muçulmana. Essa foi uma mudança em que as pessoas teriam que abdicar da cultura persa e vir a assumir uma cultura islâmica. Marjorie vem de uma família rica e com acesso a cultura, o seu ambiente familiar é bem questionador, o que influenciou bastante a personalidade da protagonista. O próprio título do gibi "Persépolis", a antiga capital da Pérsia, é a maneira de mostrar o quanto Marjane não se identificava com aquela cultura imposta.
Contudo, desde que o governo de influência religiosa assumiu o poder, as escolhas iam ficando cada vez mais restrita, qualquer movimento político de questionamento à ordem era motivo de condenação a prisão pelo menos. Qualquer atitude que fosse de origem ocidental era proibida, assim bebida, música, qualquer jogo, determinadas roupas não poderia ser usado para que as pessoas pudessem se "libertar" da opressão ocidental. Era esse mesmo conceito de liberdade que impunha às nulheres usar burca pretas. Além disso, o governo pregava que os cabelos emanavam energia capazes de enlouquecer os homens. Incapazes de auto-controle e induzindo a culpa exclusivamente às mulheres, a beleza física não poderia ser exposta para não correr risco de elas induzirem desejos e atitudes de estupro pelos homens.
Se uma mudança assim já é ruim o suficiente, imagine que o Iraque entra em guerra com o Irã anos depois. A autora mostra o quanto a vida dela era restrita. Além de seguir as inúmeras regras impostas pelo governo, ela vivia sempre num estado de tensão sobre quando o seu país iria ser bombardeado. Cada ataque trazia a incerteza da sobrevivência dos entes queridos que ficavam em casa e principalmente dos combatentes da guerra. O Estado, para minimizar o horror da perda dos soldados, tratavam-nos como heróis com cartazes e monumentos aos heróis, além é claro de garantir que eles estavam no céu curtindo do bom e do melhor.
A história traz vários momentos da vida da autora, a sua infância, a entrada na adolescência, a partida para a Europa e o contato com uma cultura completamente diferente da sua, o retorno ao Irã já no início da idade adulta ... A protagonista sofre várias mudanças tanto física como na sua atitude no decorrer da obra, ainda que mantenha a sua personalidade questionadora.
A temática do quadrinho é bem pesada porém a narrativa é conduzida de forma bem leve na maior parte do tempo. A obra mostra que encarar a vida com bom humor é essencial para continuar mantendo a sanidade mental numa situação como aquela. Para mim, com uma cultura ocidentalizada é chocante como as pessoas podem sorrir logo após a notícia de um massacre, por outro lado, eu percebo que se as pessoas deixassem levar as suas emoções pela gravidade e pela injustiça dos acontecimentos, o estado de humor delas seria insuportável. Eu não consigo encarar o humor da obra como algo alienante por si só, o humor foi a maneira como a mente se adaptou ao contato frequente com o horror de uma guerra.
Persépolis apesar de ser uma história de uma cultura diferente, mostra o risco que o nosso país corre em cultuar tanto o autoritarismo com motivações religiosas. Eu preciso esclarecer que religião não é em si algo prejudicial já que elas costumam se fundamentar no amor e respeito a todas as pessoas. O fanatismo que impõe que todos devem se portar de acordo com uma escritura sagrada é que é o problema, se isso vier acompanhado de domínio político, é ainda pior. Os regimes autoritários vão se impondo aos poucos, sempre se justificando com um "enfrentamento ao inimigo", "salvar as tradições e a família" e a desculpa mais covarde: "é por nossas crianças"; esse é um passo para que a polícia torne-se um ente fiscalizador de costumes e que imponha pela força as atitudes permitidas e as proibidas.
É por isso que o enfrentamento precisa ser à altura do cerceamento da liberdade. Aqueles que permanecem neutros e consideram um exagero o questionamento a decisões arbitrárias (já que eles não são afetados diretamente), em algum momento a conta por sua omissão vai chegar e será bem mais difícil reivindicar de um governo que já acumulou diversas camadas de poder. Os iranianos pouco poderiam fazer com um governo armado com metralhadoras e mísseis; ou se adaptavam e passavam a incorporar aos demandos ou seriam torturados, presos ou mortos. Apesar disso ainda está distante do nosso país, há um clima de normalização da barbárie em que deixa o caminho aberto para a instauração de um governo teocrático com os mesmos moldes das ditaduras de motivação islâmica.
Além de todo esse contexto que se identifica cada vez mais com o que ocorre no Brasil, Persépolis traz outros méritos que justifica o seu sucesso de vendas (já vendeu mais que 2 milhões de cópias em todo mundo), Marjane escreve de uma maneira bem simples e divide a narrativa em várias histórias curtas, assim mesmo que o livro tenha 352 páginas a leitura flui facilmente. A autora também é responsável pelos desenhos que tem um estilo underground, por isso, o traço é bem simples mas muito expressivos. Em meio a toda essa simplicidade, há uns quadros em destaque em que a imagem explora muito bem uma mensagem conotativa.
Eu fiquei incomodado com o fato de a edição não possuir numeração de páginas, o que ajudaria a identificar alguma temática específica entre as várias histórias e para acompanhar o avanço da leitura. Um outro ponto a ser melhorado é que ao final do livro há páginas em branco que poderiam ter sido utilizada para conter extras, páginas em branco fora da narrativa é algo subaproveitado.
Para mim, a leitura desse quadrinho possibilitou um contato com uma cultura muito distante e com a possibilidade de ser narrada por quem viveu uma vida ali. Além disso, a leveza com que cada personagem encara a vida num lugar com tantos riscos, me traz um alento sobre como encarar uma realidade com tantas notícias diárias ruins. Além disso, a similaridade do uso da religião como motivador para a retirada de direitos nos serve como alerta sobre o que pode acontecer caso não demonstremos com muita ênfase que não queremos isso para nós.
Mais do que nunca, eu preciso ressaltar que essa obra é um conteúdo voltado para adultos. Essa é uma excelente indicação de presente mas é preciso deixar claro que se a pessoa estiver passando por uma situação de vulnerabilidade emocional, essa obra não é indicada por tocar em
Persépolis é excelente e justifica estar na lista dos clássicos dos quadrinhos, principalmente por sua riqueza em tocar diversos temas. Para esse texto, eu foquei apenas em alguns mas certamente outros leitores serão impactados por vários outros.
Compre aqui
Ficha técnica:
Formato: 16,5 x 24,5 cm; Preto e Branco e lombada quadrada com orelhas
Número de páginas: 352
Eeitora: Compahia das Letras
Preço de capa: R$ 57,90
Leia também da editora Companhia das Letras:
Os Sertões A Luta - a adaptação em quadrinhos de um combate histórico
Desenhados Um para o Outro - Aline e R. Crumb
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