Angola Janga Uma História de Palmares


Angola Janga é uma graphic novel escrita e desenhada por Marcelo D'Salete e publicado em 2017 pela editora Veneta. Em 2018, a obra ganhou o prêmio Grampo Ouro, HqMix e o Prêmio Jabuti na categoria quadrinhos. O livro segue sendo publicado em vários países pelo mundo e é elogiado por onde passa devido ao seu aspecto histórico e tratar especificamente do período escravocrata, pela sua qualidade técnica, além de ser uma muto bem escrita.

A história inicia por Soares que era um escravo em Pernambuco no século XVII. Dona Catarina, a matriarca de um engenho, pouco antes de morrer, fala a Soares sobre a sua carta de alforria, documento esse ignorado por seu filho. O negro fica revoltado com a situação e após ser chicoteado, ele resolve fugir e encontrar Palmares, onde ele pede pra ser aceito como fugitivo.

Eu imaginava que Palmares era um quilombo apenas mas o fato é que passa muito longe disso. Palmares na verdade é um território maior que alguns estados brasileiros, lá havia vários quilombos que eram como cidades, algumas do tamanho equivalente as demais cidades da época. Angola Janga (ou pequena Angola) era protegida pela mata braba só conhecida pelos seus moradores. O nome remete bem ao sentimento dos negros que foram retirados de vários locais da África (principalmente de Angola) e foram obrigados a abrir mão da sua liberdade e da sua cultura. Angola Janga portanto seria o lugar em que eles poderiam ser livres inclusive para poder expressar a sua fé.

O território de Palmares atraia muitos olhares pelas riquezas ali presente, além é claro de ser o refúgio dos escravos que eram vistos como propriedade pelos brancos da época. A obra mostra que os quilombolas algumas vezes invadiam e saqueavam cidades, para toda um Estado que queria a destruição do seu território, os saques eram necessários para garantir a sua sobrevivência, era difícil não manter um clima de guerra.

Contudo nem tudo era conflitos e mortes. Zuna, por exemplo, é o personagem que mostra o aspecto da tentativa de acordo de conciliação entre os brancos e os negros. Zuna é ambicioso e quer tornar-se o líder espiritual do seu mocambo conhecido como Macaco. Ele faz um acordo com os brancos de retirar o seu povo de Palmares para um outro território. Os interesses divergentes de Zuna e Soares vão levar a um conflito interno e ser aproveitado pelos brancos que estariam aguardando para eliminar quem sobrasse dessa confusão.

Com um destaque menor, Zumbi aparece como a figura que é respeitada por vários quilombos e tinha o poder de liderança. A sua presença era tão imponente que os brancos acreditavam que, para destruir Palmares, era necessário matar Zumbi.

O personagem que se destaca entre o núcleo branco do enredo é Domingos Jorge Velho. Esse é adaptado de uma figura real conhecida na História do Brasil. Os piauienses ouvimos falar muito desse nome já que esse conhecido assassino de indígenas foi o principal desbravador do território piauiense. A sua rota foi proveniente da Bahia e subindo ao norte do território. Após a terra sangrada, os portugueses resolveram ocupar aquela região, o que originou o Estado do Piauí. Por isso o nosso mapa é tão extenso ao sul e afunilado ao norte. Domingos Jorge Velho era conhecido pela sua ferocidade e comando, para o Estado brasileiro, era o principal nome para destruir Palmares e sair matando qualquer negro que aparecesse que resolvesse encarar as armas dos bandeirantes. No gibi, a sua crueldade é bem retratada ainda que a história mostre um pouco da sua infância.

Angola Janga foi para mim uma experiência rica no seu conteúdo histórico, como eu já mencionei, sabia apenas que uns negros se refugiava em Palmares mas estava longe de saber a dimensão daquilo. Por falar em dimensão, os livros de História da minha época ignoraram, mas o conflito que levou a destruição do território foi um dos maiores conflitos internos da época.

Angola Janga contudo não trata apenas de guerra mas é uma obra que mostra a cultura, a arquitetura, os trajes, a língua (o autor faz um glossário dos termos típicos da época) de um povo que lutou por sua liberdade mas que foi praticamente dizimado e que tem grande importância para a formação do brasileiro enquanto sociedade.

Marcelo D'Salete tem uma narrativa excelente em saber utilizar as falas ou apenas a linguagem visual. Ele utiliza os recordatórios de uma maneira única, pois geralmente esse espaço é para colocar o relato de um narrador, aqui ele os utiliza como a continuidade de uma fala no quadrinho posterior, quando o personagem não está mais em foco. Vale ressaltar que o autor traz personagens complexos e faz questão de quebrar o caminho fácil do "bem contra o mal", assim somos levados a sentir emoções divergentes para os mesmos personagens e encontrar pessoas boas e ruins tanto entre os brancos quanto entre os negros.

Eu recomendo que você faça uma leitura vagarosa pois o traço de D'Salete é muito detalhado e ele aproveita posteriormente vários detalhes que ele insere na narrativa. Além disso, o autor utiliza uma mensagem poética em algumas páginas, o que engradece ainda mais as suas belas imagens em preto e branco. As páginas de Angola Janga devem ser degustadas tanto na beleza de cada quadro quanto no estilo narrativo versátil. Não é a toa que a obra levou 11 anos para ser finalizada.

O livro tem importância por ser uma fonte histórica entre poucas que pode trazer a visão de Palmares e a sua relação com o Estado brasileiro a partir da perspectiva dos negros. É preciso ter acesso a esse material para que além de conhecer a dificuldade que é para os negros sobreviver, como compreender melhor o racismo que séculos depois ainda nos afeta diretamente. Com isso, quem sabe algum dia as pessoas possam entender o quão ofensivo uma pessoa (seja ela deputado ou não) utilizar arrobas para medir quilombolas e o comparar como animais (nem para procriador ele serve mais). Assim quem sabe a gente compreende o quanto declarações como essa são criminosas a ponto de gerar apenas asco e não serem motivadoras para a eleição de presidentes.

Comentários