O Final de Watchmen e a Política Brasileira Atual


Watchmen é um clássico dos quadrinhos de heróis, lançado pela DC Comics em 1986, o quadrinho é uma mini-série em 12 partes que saiu mensalmente quando foi publicada pela primeira vez. A DC não acreditava na proposta, por ter um enredo muito distante do que se habitualmente publicava. A história vendeu muito e ainda hoje ela é republicada. Um fato curioso a respeito disso é que os personagens foram inicialmente imaginados para serem os da Charlton Comics que a DC havia adquirido. Por ter “planos maiores”, a editora não permitiu o uso dos mesmos. O criador Alan Moore resolveu criar personagens baseados nos que ele tanto queria usar. O resultado foi que a DC não fez nada de relevante com os personagens que ela quis proteger e Watchmen se tornou uma obra de tamanha referência que a DC resolveu resgatar para ajudar a resolver o fracasso de reiniciar o seu universo com os Novos 52. Esse sucesso não é por acaso, já que a obra têm vários aspectos que podem ser citados e que serviram de base para grandes histórias posteriores a ela. Nesse texto, eu foco no final da obra e estabeleço uma relação com a atual situação política no país, portanto se você não leu ou se apenas viu o filme (dá no mesmo), o texto possui spoilers pesados da obra.

O enredo é o seguinte: o herói conhecido como Comediante é encontrado morto, atirado do alto do seu apartamento. Há alguns anos, os heróis estavam impedidos de atuar nas ruas e portanto ficou a dúvida de quem teria feito tal crime. Ele atuava junto com um grupo de heróis. Um deles, Roscharch, o herói que teimou em obedecer à lei de afastamento, foi lá investigar, no decorrer das investigações outros crimes ocorrem e o herói mais poderoso da Terra (Doutor Manhattan) decide ir se exilar na Lua. A sucessão dos acontecimentos, leva a Roscharch acreditar que há um plano envolvendo o assassinato de heróis. Do outro lado do mundo, a Rússia invade países da Ásia e deixa os EUA apreensivos com a expansão do comunismo. O clima no mundo fica tenso de tal forma que a qualquer momento parece que a Terceira Guerra Mundial será deflagrada.

Ao final da história, descobre-se que o herói Ozymandias, que possuía uma inteligência acima da média, articulou um plano definitivo de pacificação mundial. O plano consistia no seguinte, aproveitando da situação de tensão em que o mundo estava vivendo, ele iria neutralizar cada um dos heróis da sua equipe para que eles não pudessem impedir a execução do seu plano. Cada um dos acontecimentos da história já havia sido planejado. Roscharch e o Coruja juravam que estavam descobrindo tudo, porém quando eles descobrem o verdadeiro vilão da história, o plano já havia sido executado. Ozymandias havia enxertado um cérebro de um super humano com poderes psíquicos numa criatura que parece um polvo gigante. Ele já havia estudado o teletransporte e se frustrado, toda as suas tentativas levavam ao espocamento da pessoa. Assim, ele teletransportou a criatura para o centro da metrópole, aí quem não morreu, foi atingido pela loucura e se matou dentro do raio de atuação da explosão. Pois bem, em meio às imagens do terror da tragédia, as nações do mundo resolveram esquecer esse negócio de disputa por modelo econômico ideal e se uniram contra um mal maior, a suposta invasão alienígena.


O nome Watchmen aparece no gibi apenas numa pichação que diz “Who watches the wattchmen?” (Quem vigia os vigilantes?) Cada um dos heróis apresentados são humanos nos seus defeitos. Além dos seus poderes diferentes, o seu caráter também é único, assim os defeitos não deixam de existir pelo fato de uma pessoa decidir sair combatendo o crime fantasiado. Os heróis são pessoas e em Watchmen eles trazem a insegurança, obsessões, ira reprimida, taras; muitas vezes o aspecto heróico está no combate ao crime, mas na vida privada, eles podem até estuprar. São essas as pessoas que confiamos a nossa proteção. Esses são os heróis que nos deixam seguros e com os seus poderes tomam a decisão sobre ações para evitar a criminalidade? Quem sabe realmente se o que eles estão fazendo é justo? Quem vigia esses vigilantes?

Dito isso, eu trago essa indagação para a situação brasileira atual. Há poucos anos, a Polícia Federal trouxe à tona o maior escândalo de corrupção da história do país. A população ficou atenta a cada notícia e uma situação foi apresentada de maneira inédita: milionários donos de empreiteiras estavam sendo presos no decorrer das investigações, vários deles fizeram acordos de delação premiada em que foram citados os nomes de diversos políticos e o quanto cada um deles recebeu de financiamento não declarado nas suas campanhas eleitorais. Isso colocou lenha na fogueira de uma indignação inflamada durante os protestos realizados em 2013, quando milhares de pessoas foram às ruas insatisfeitas com os problemas sociais que os políticos não conseguiam resolver.

A Operação Lava Jato, como foi nomeada pela Polícia Federal, acendeu a esperança de que finalmente a impunidade acabaria e que a corrupção iria chegar ao fim, porém isso ficou como um conto de ficção. Durante o processo de investigação, descobriu-se que políticos continuavam desviando dinheiro de estatais através de empreiteiras e que esse não era um crime restrito ao Palácio do Planalto, as delações mostraram que parlamentares, governadores e prefeitos estavam na jogada. A Lava Jato mostrouque a sujeira é velha e apenas se espalhou de forma crescente e que para poder governar tinha que brincar no parquinho da corrupção.


A Operação estava indo longe demais e era preciso barrar isso e estabelecer um bode expiatório para “estancar a sangria”. Assim de uma operação que envolvia a maioria dos partidos, as investigações foram agilizadas para pegar tanto o partido que seria o maior responsável por tudo quanto o grande vilão da porra toda: Lula. As investigações foram ágeis para pinçar elementos que incriminasse o PT, mas agia de maneira lenta para os indícios que apontavam os demais partidos. Quem estava fora do bode expiatório foi pouco investigado, teve processo arquivados ou nem sequer foram mencionados. A população elegeu como herói o juiz Sérgio Moro, como o “paladino da corrupção”. De posse de um herói e um vilão, a população tinha em mente toda uma trama fácil de compreender. A história do Brasil mostra que nada é assim tão simples e Watchmen nos trás a dúvida: Quem vigia os vigilantes?
A Operação Lava Jato funciona com duas frentes muito fortes: a delação premiada, que livra suspeito de uma cadeia sem julgamento e áudios vazados dessas delações que conquista o apoio da população que está pouco se importando com o cumprimento de leis. Assim qualquer delação sem provas é o suficiente para uma condenação pública, o rito judicial de se avaliar provas contundentes ao crime é bem reduzido.  Isso levou a uma situação tal  que José Serra é citado por receber 52 milhõesmas não é considerado réu por falta de provas e uma visita a um apartamento de um milhão de reais e uma troca de emails sobre as modificações do mesmo condenaram Lula por 12 anos. Uma condenação bem sui generis, Lula só poderia falar apenas com a família e com os advogados, ele estava condenado a não dar entrevista e ter acesso a poucas visitas, diferente de qualquer outro preso. Após ser condenado pelo juiz Sérgio Moro, a sua sentença foi confirmada e ampliada pelo colegiado de juízes de Segunda Instância, o processo mais rápido já ocorrido, uma coisa de se conferir 250 mil páginas em alguns meses, três juízes deram a mesma sentença, enquanto a primeira sentença era lida, um canal confirmou “sem querer” que os três juízes iriam condernar ... e condenaram!

Esse processo envolvendo Lula gerou muita discussão no meio jurídico sobre a relevância das provas para a condenação a pergunta que fica é: Quem julga os juízes? Essa sentença ainda vai ser revista pelo Supremo Tribunal Federal a corte máxima do país que teve alguns dos seus ministros citados durante as delações, mas quem vai querer investigar isso? O que importa é  manter o vilão preso e aos demais citados, deixa pra lá, afinal justifica-se que isso colocaria em risco a imagem do país com tanta pessoas influente fazendo parte do esquema.

O final de toda essa história é a eleição de um outsider de extrema direita. Outsider apenas para quem nunca ouviu falar dele, porque ele estava há quase 30 anos como deputado e dentre os partidos em que foi filiado, ele passou 11 anos no Partido Progressista (PP), o partido com o maiornúmero de políticos investigados na Lava Jato. A população se contagiou com o seu discurso de indignação e intolerância a corrupção (ainda que ele nunca mencione o PP nem depois que ele se desfiliou). Jair Bolsonaro é o outsider que não tolera a bandidagem e usa de frases de impacto que é repetido a exaustão por populares programas policiais. Além dos seus bordões, ele vociferava discursos inflamados em favor de tudo o que era contra a “moral”, para isso, ele e seus seguidores colavam notícias falsas que ajudaram a alarmar uma população cheia de preconceitos dentro do armário. Isso fez com que as pessoas vomitassem a sua intolerância como “liberdade de expressão” e levantassem a bandeira contra o politicamente correto. Tudo isso ficou relacionado na mistura da “maldita corrupção do PT”, assim, para sermos contra a corrupção temos que ser contra  a toda e qualquer ideia progressista, discursos de igualdades e direitos humanos e até mesmo preservação do meio ambiente; tudo isso faz parte de um plano que visa a implantação do comunismo no Brasil e com ele acabar com a família tradicional e com a acumulação de bens, como assim disseminava os formadores de opinião.

O medo é a pedra de união de uma população e foi exatamente isso que o personagem Ozymandias percebeu em Watchmen. A morte de metade da população de Nova York iria unir o mundo contra um mal maior. Ozymandias é retratado como um sujeito gentil, pacifista e vegetariano. Enquanto os demais heróis têm uma história com tragédias, esse tem uma história de esforço individual, um filho de milionários que doou toda a sua herança e conquistou o sucesso como um “bom homem heterossexual loiro”. Todo esse auto-conceito o fez se sentir superior aos demais e o único que tinha a solução a tudo a isso que estava aí. Uma solução que parece ser ótima exceto para quem morreu e os que vão se lamentar.

Para mim, soluções que privilegiem alguns em detrimentos de outros é algo que deve ser relevado. Argumentos do tipo “têm quefazer o que o regime militar não fez, matando uns 30 mil! Se  vai morrer alduns inocentes, tudo bem” (Jair Bolsonaro), simplesmente não me atrai para ouvir uma argumentação que se segue a isso. Voltando a obra citada, os heróis sabiam da verdade mas se ela fosse revelada, as guerras poderiam voltar com mais intensidade. No Brasil, a verdade fica contada pela metade e por mais que se diga, é preferível acreditar no conto do presidente mal e juiz bom. Alan Moore deixa para mim a necessidade de que, mesmo que você não tenha meios para mudar uma situação ali imposta, cabe a você manter a desconfiança e não ser apenas um pião nesse jogo de gato e ratos. No quadrinho, Ozymandias olha para Doutro Manhathan e pergunta: “Eu agi corretamente, não? Deu certo no fim.” E ele, sem entender responde: “”No fim”? Nada chega ao fim, Adrian. Nada.” A Terra provavelmente voltaria a ter disputa para conquista de poder, da mesma forma, a corrupção permanece no Brasil com ou sem PT, soluções fáceis não resolvem problemas, principalmente quando as soluções não são discutidas de maneira aprofundada.


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